domingo, 26 de dezembro de 2010

Road to Pirenópolis


Cultura filosofal das estradas (1)

Nossa mania é vender barato
Do básico ao acabamento
Herrar é umano
Você tem uma ambição na cabeça? Faça Anhanguera
Casa Rosa Drinks
Mude em até 90 dias
Os melhores negócios imobiliários estão aqui
Esta é uma obra do governo federal
Comida caseira
Baratão da construção
Serralheria Amazônia

Cultura filosofal das estradas (2)

Nossa mania é vender Drinks
Do básico ao umano
Herrar em até 90 dias
Você tem uma ambição na cabeça? Faça Barato
Casa Rosa acabamento
Mude em até aqui
Os melhores negócios do governo federal
Esta é uma obra da construção
Comida Amazônia
Baratão caseira
Serralheria Anhanguera

José e Adélia


Uma obra - seja musical, literária ou de qualquer outra manifestação artística - só acontece quando ela "vibra poeticamente". E não há outra coisa com que associar isso se não "o divino" - aquele tipo de manifestação acima do humano que caracteriza a forma mais autêntica de religiosidade. Havia acabado de escrever o post sobre o ateísmo crente de José Saramago nos comentários sobre o filme JOSÉ E PILAR quando, zapeando pela internet, encontrei essas ideias acima, ditas por uma poeta tão grande quanto o escritor lusitano - nossa mineira Adélia Prado. Achei que seria um contraponto - ou um complemento, dependendo da perspectiva de quem veja o assunto - para o falso ateísmo sincero de Saramago e por isso queria registrar aqui na Hamaca, que é meio como que a contracapa do Sopão.

Vendo Adélia Prado falar sobre essa vibração poética que confere à arte o seu verdadeiro estatuto de valor como manifestação humana, lembrei também de Guimarães Rosa, que dizia exatamente a mesma coisa com outras palavras. Ao discorrer sobre um de seus livros de contos, falava de uma das histórias que não evoluíra e acabou excluída porque "não transcedia". E a gente sabe, pulando aqui no trampolim das Gerais para a Península Ibérica, o quanto transcende cada parágrafo de palavras muito bem empregadas de um livro de José Saramago. E no entanto, Saramago, um dos grandes e singulares artífices dessa vibração poética de que fala Adélia e da transcedência a que se referia Rosa, passou a vida - e sobretudo a velhice, que foi o período da vida em que teve maior projeção, quando menos por ter ganhado o Nobel de Literatura - negando aquele mesmíssimo "divino" de que falava Prado e a que poderia estar se referindo também Guimarães. É estranho que seja assim, tanto quanto é incomum que nada disso diminua a estatura do escritor português - antes, talvez até o engrandeça pelo simples fato de ele abraçar essa contradição, fazendo da teimosia uma estranha forma de contrição.

Disse que assisti a Adélia Prado falando sobre as conexões entre a vibração poética e a dimensão do divino no ser humano. Pois bem: é a parte final desta nota - lembrar de um novo site (novo, pra mim), mantido pela editora (ou livraria) Saraiva, com entrevistas e vídeos como este a que me refiro agora. Anotei nos meus links (do Sopão e da Hamaca) e sugiro que copie para os seus, que pelo jeito sempre se poderá encontrar lá uma pitada de comentário ligeiro a iluminar a vida pelo clarão dos poetas, crentes ou ateus, como Adélia ou o fantasma de Saramago que há de estar por aí a vagar feliz com a confirmação ao contrário de suas convicções mais decantadas enquanto entre nós esteve.

* Para cortar caminho e assistir ao vídeo, clique aqui.

terça-feira, 30 de novembro de 2010

Como nossos pais


Agora nós temos mais um concluinte aqui em casa. Formada, com diploma enrolado naquele canudo de camurça, anel de lembrança, convite e fotos oficiais, breve teremos até o álbum completo. Não foi nem Rejane num virtual doutorado nem eu num ainda mais remoto mestrado. Quem “colou grau” – não há como a expressão não soar com uma mistura de solenidade com humor, o que é ótimo porque tira a seriedade desnecessária sem avariar a importância do título – foi... Cecília. Como disse a Tia Aninha – que não é a professora, mas a madrinha de Bernardo – foi “a primeira conquista da vida dela”.

A gente sabe, eu e Rejane, embora o nosso vocabulário seja menos formal. E nessas horas, nada como a presença de alguém como Aninha, sublinhando a cerimônia que um par de pais informais demais nem sempre sabe cultivar como mandam os regulamentos. Pois é: Cecília se “formou” no Jardim, com aquela colação de grau bonita, sensível, festiva e solene na Escola Sagrada Família Menino Deus (quase o mesmo nome do meu distante “Jardim de Infância Jesus Meninos, que ainda deve até funcionar lá em Parelhas, não sei).

E foi bonito ver nosso bebê com jeito e expressão de gente grande entre os colegas, metida numa beca vermelha e calourenta, ouvindo e participando de cada etapa do ritual – juramento, entrega do diploma, discurso da professora, hino nacional e tudo o mais – segurando firme o sono e o cansaço que nessa hora a gente, adulto ou criança, sabe que bate. Vendo Cecília ali, os olhos cheios de água muitas vezes, muito bem disfarçados com a saidinha para tirar uma foto e tal, lembrei das minhas três formaturas e pela primeira vez vi o filme passar de novo, renovando a perspectiva.

Explico: lembrei de minhas três colações de grau; a primeira no jardim (nacos de memória voltaram, com esforço, para além da foto três por quatro de beca e com aquele chapeuzinho engraçado, que era tudo de que eu lembrava até então); a segunda no segundo grau no glorioso CAJ (Colégio Agrícola de Jundiaí, que com toda certeza já mudou de nome faz tempo) e a terceira, a maior de todas, lá na praça cívica do campus da UFRN, no final do curso de Comunicação.

Da primeira, como disse, lembro quase nada, mas só de ver Cecília ali naquele palco no centro do pátio da escola me veio um fio de memória esfumaçado pelo tempo, eu incomodado numa roupa muito especial, com calor como Cecilia devia estar se sentindo, um colarinho apertado, e minha mãe e minha professora – Dona Eliene – me entregando um canudinho branco amarrado com uma fita vermelha e um monte de gente olhando pra mim naquele momento. Um flash que eu nem desconfiava que teria, memória resgatada, de fato, muito mais por Cecília do que por mim – presente que ela me deu no dia de sua primeira formatura.

Das outras duas formaturas, com memória mais vasta graças ao advento da idade, veio o caráter fortemente solene da segunda. Nossa paraninfa geral da turma era, imagina quem, Odiléia Mesquita em pessoa, o que já diz muito sobre aquele bando de adolescentes completamente desorientados num mundo pré-internet. Odiléia era a prefeita da cidade onde se situava a escola, uma espécie de Viúva Porcina da política local no estilo e na prática política propriamente dita.

Foi certamente uma formatura muito mais sufocante do que a primeira, de maneira que passo logo à terceira, colação de grau superior, sempre a mais divertida, marcada pela juventude, por uma inconseqüência boa, por um antiformalismo visceral que fazia a gente rir de tudo, debochar de cada pedaço do ritual, invalidar ali, no interior das colunas de alunos que formávamos, um bando de embecados loucos por viver a vida e nada mais, tudo o que para nossos pais eram momentos da mais extrema importância.

Pois bem: vendo Cecília na sua primeira formatura, pela primeira vez me coloquei na posição dos antigos, dos meus pais, e devo ter sentido um décimo do que se passou por dentro deles quando me viram “formado”em todas as minhas colações, do jardim ao campus da UFRN. Uma forma muito particular de emoção intraduzível, como se você estivesse diante de algo que, por mais previsível que fosse, não parece estar acontecendo – como se aquilo tudo estivesse acima do seu merecimento. Enfim, você se anula diante do seu filho – o que, além de ser essencial à continuidade da espécie e muito vital para o cultivo da humildade, é bem emocionante, posso garantir.

Não que o desconforto da formatura do jardim de infância, a solenidade do segundo grau e a bagunça da universidade tenham sido enganos, erros, culpas. Nada disso – cada momento com sua manifestação própria. Mas viver esse tipo de experiência do lado de cá – no camarote da família, como nossos pais – mudou a perspectiva e acrescentou um novo grau a nós mesmos. Agora só falta Bernardo, daqui a dois anos. Vamos ver o que ele vai nos trazer junto com diploma, beca e anel.

P.S: Breve, fotos.

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Cinema de outras terras (2)


A gente persegue os filmes ou são eles que não saem dos cascos da gente? Os temas que a vida propõe, em forma de narrativas, livros, imagens, programas de tevê, cinema e alhures são resultado de alguma conspiração dirigida individualmente para cada um de nós ou tudo não passa de uma vazia coincidência? Sei não, só sei que logo depois de escrever aqui aquelas bestagens sobre o filme "Terra Vermelha", fui assistir a "Brincando nos campos do senhor", um anti-épico oitentista com a assinatura sempre respeitável do argentino-brasileiro Hector Babenco, e parece que é o assunto que me persegue, se não for o caso de eu mesmo estar no rastro dele mas sem me dar conta dessa procura. E vêm as distinções, com ou sem o circunflexo daquela tal reforma: "Brincando" reforça um pouco o que eu dizia na conversa anterior, sobre filmes que de tão afiados na sua teimosa reconstrução de uma realidade miserável tornam-se eles mesmos qual faca afiada que é bela quando refletida à luz da lua mas intimida quando se pensa no risco de se trocar o olhar contemplativo pelo tato que ocasiona corte, sangue, dor.

Ficou barroco demais, já entendi e já me explico. "Brincando" é um filme que, por mais exato que seja na exposição da realidade amazônica-indígena da época, mostrando os riscos da conexão selvagens-padres-e-evangélicos-fundamentalistas-americanos-cometendo-equívocos-quando-pensam-estar-salvando-uma-espéce, ainda é uma produção enquadrada na moldura do cinema convencional-narrativo-ocidental-clássico. E "Terra Vermelha", talvez por ser um filme, no bom sentido, nacional, não sofre daquela amarra que por mais sutil que seja é sempre como uma corda prendendo o filme de Babendo no pé da mesa da indústria audiovisual da banca de Tio Sam. "Terra", não: pode se dar ao luxo de ser o fracasso de público que deve ter sido mesmo, não precisa se imolar diante do fato de ser visto em poucas e raras salas, não raro apenas em sessões de festivais de cinema onde brilham mais as pérolas menos acarinhadas pelos esquemas promocionais de costume (embora isso também seja uma espécie de fetiche alimentado por certo segmento do público e independente da qualidade do filme, mas esse já é outro papo que não cabe aqui).

Enfim: enquanto "Brincando" chega até a enternecer ao mostrar a fragilidade de uma comunidade indígena semi-isolada na floresta amazônica, "Terra" será sempre aquele chute em testículos desavisados para com a realidade suicida do que restou das nações que habitavam o território do atual Mato Grosso do Sul. Entre um e outro, há um rio caudaloso de gradações. Numa margem, por maior que seja a dor do Tom Bereger desprovido de identidade e ansioso em se mesclar aos silvícolas tupiniquins, sempre será um pouco Hollywood. Na outra, a lama local levou qualquer resto da estética cinemão e deixou apenas o limo de nossa própria decadência antropológica. Certo tipo de espectador do primeiro (que sairá, ainda que triste, narrativamente satisfeito da sala de exibição) poderá dar as costas ao segundo (do qual, muito provavelmente, sairia antes do final da projeção).

Uma última nota que o filme, revisto em tempo deslocado e posterior, provoca é aquela referente ao tema do fundamentalismo religioso. Vendo, lendo e ouvindo sobre aquilo em que os EUA estão se transformando à sombra dos tea parties da vida, não deixa de ser curioso acompanhar a aventura tão ingênua quanto criminosa do grupo de missionários em busca de conquistar tribos remotas da floresta brasileira. Rever tempos depois um filme marcado por outra década quase sempre traz essa impressão de pulga atrás da orelha, comentando ironias, com pequenas risadas, chistes desperdiçados. "Brincando nos campos do senhor", que continua bem poético e transcendente na cena em que o piloto Bereger quase joga seu teco-teco num bloco maçiço de montanha na floresta, hoje soa como uma amarga premonição de impensável futuro na antropologia não dos povos da floresta, mas do americano médio que quer despachar Obama com a mesma fúrica com que apoiou Bush, embora todo mundo tenha esquecido disso.

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Cinema de outras terras


Quem, como eu, aprendeu desde menino que entrar numa sala de cinema é entregar olhos, coração e mente a uma experiência de entretenimento - naturalmente, com a esperança de que tal entretenimento seja minimamente inteligente - ainda sai desta mesma sala meio tonto quanto assiste a algo que vai além desse propósito -ou fica aquém, conforme a perspetiva pela qual se veja o problema. Eu falei "problema"? Um filme não deveria ser um "problema" - antes, uma solução para a fome de imagem, informação, envolvimento, distração, conhecimento. Mas filmes como "Terra Vermelha" são uma amostra de danações expostas que contrariam tudo o que vem sendo dito desde a primeira palavra desta conversa aqui - precisamente, "quem".

E quem, como eu, ainda estranha filmes como "Terra Vermelha", pode-se considerar um feliz espectador em formação. "Terra Vermelha" é aquele tipo de ficção com o maior ar de documentário disfarçado, de tão real e de tão intenso na sua busca de retratar em filme uma tal realidade. No caso, a realidade dos índios do Mato Grosso do Sul cuja sobrevivência cultural e econômica - sobretudo econômica - está confinada a áreas de reserva onde a existência deles simplesmente não cabe. E no rastro dessa espécie particular e sinistra de segregação, vem toda uma decadência que aos olhos dos brancos, ao invés de denunciar a natureza do problema, termina por reafirmar o mito de que o índio, beberrâo e errático, é o responsável pela sua própria danação. O filme faz a antropologia dessa tragédia rural e urbana sem abrir mão de certo distanciamento e determinada dureza de olhar. Quando o espectador ahbituado ao entretenimento - ou mesmo ao cinema lírico de arte, mas sempre narrativo - se defronta com esse tipo de cinema, não há como o estômago não revirar como deve ocorrer com as entranhas de um índio faminto.

"Terra Vermelha" bebe no mesmo balcão sujo de bar onde se escoram, qual bebuns perdidos mas visionários, filmes como "Baixio das Bestas" e "Amarelo Manga" - ambos, salvo engano, do pernabucano Cláudio Assis. A pequena diferença que houver, se existir, está no fato de Cláúdio Assis nutrir, pelo menos é o que se sente diante de seus filmes, certo culto até meio fetichista pelas misérias que exibe, enquanto a triste condição dos índios suicidas de "Terra Vermelha" soa mais como o lamento de quem vê aquilo com um choro preso na garganta- sujeito a se impressionar, mas já sem capacidade de de se comover. Se Assis só enxerga palperização - inclusive cultural - quando está diante da miséria dos mestres de maracatus do agreste pernambucano, o diretor de "Terra Vermelha" (Marco Bechis) também é um observador inflexível frente à tragédia do índio sul-matogrossense. Mas ele acrescenta a esse anti-receituário visual uma carga de dignidade derradeira - e inexpugnável. Vide a cena mais famosa de seu filme, aquela em que o índio velho mastiga e engole um punhado de terra diante do fazendeiro que quisera provar sua ligação telúrica com o lugar apenas segurando um torrão de punho erguido no ar.

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Trabalho de casa




A escolinha da garagem funcionou durante algumas semanas na casa em que a gente morou até pouco tempo. Era uma instituição de ensino informal, criada para ocupar os meninos quando eles perderam esse privilégio de poucos, tanto para pais quanto para filhos, que é a figura da babá. Era uma maneira de ocupar e divertir as crianças com atividades caseiras mas educativas. Coisa de pintar, colar, ir ao quadro improvisado na parede.

Aconteceu que quem mais acabou aprendendo com a escolinha da garagem fomos nós, os adultos. Nossa lição de casa foi ver que a ausência de babá proporcionava uma aproximação maior com os meninos. E foi assim que o paredão da garagem da casa - que, com novo dono, está sendo toda reformada, de maneira que as fotos acima permanecerão como um relicário daquele tempo tão próximo e já tão distante - foi aos poucos se enchendo de papéis, trabalhos e desenhos.

Fechou a escolinha da garagem, naturalmente, porque não temos mais garagem. Mas não só por isso: por um validação igualmente natural do prazo daquela experiência. Ela se extinguiu à medida em que a rotina dos meninos ia ganhando outra feição, agora já assimilada à ausência de babá. Eles cresceram, nós também. Ficaram as imagens, instantâneos de um período difícil, mas proveitoso que eles, quando adultos, poderão ter a chance de revisitar em fotos, para aprender outra lição - a da necessidade de se enxergar tudo e todos como algo impermanente, ainda que com duração além do previsto e do imaginado.

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Novo habitat





A Hamaca e o Sopão estão funcionando, como muitos já sabem, em novo endereço, nova "redação", nova disposição também devido aos tensionamentos típicos deste final de campanha eleitoral. Espero que as fotos, além de atualizar o endereço, também ajudem a distensionar o ar na medida justa em que ele precisa ser amaciado.

terça-feira, 28 de setembro de 2010

Reinações de Suassuna


A mudança de endereço, com suas mil e uma atribulações, obrigou-me a interromper a leitura, mas finalmente meus olhos cansados e sedentos estão buscando descanso e água numa velha fonte da literatura brasileira em que eu ainda não havia me aventurado. Estou lendo – estive, nos dias anteriores à mudança, e devo voltar a ele ainda esta semana – o enciclopédico, fantástico e semi-árido “Romance da Pedra do Reino”, o clássico sertanejo de Ariano Suassuna, com suas quase 800 páginas.

Mas o tamanho físico do livrão é um engano quando assusta o leitor incauto. Porque foi me decidir por ele – o livro estava há bem um ano esperando na estante, eu olhando pra ele e ele olhando pra mim sem a gente ir às vias de fato – para eu vencer, assim de primeira, as primeiras 100 páginas. Pense numa narrativa enladeirada, do tipo que você lê a primeira frase e descamba pelas cem páginas à frente como quem desce sem freios um pé de serra sem nem sentir os espinhos grudando nas perna e nas costas.

Nesse embalo, venci 200 páginas e já deu pra entender que vai ser aquele tipo de livro de que você sente falta quando acaba de ler. Nesta porção inicial, é delicioso experimentar a metalinguagem matreira e gaiata de Suassuna, que faz troça dos narradores sisudos e constrói um painel daquele país sertanejo que abarca Pernambuco-Paraíba-e-Rio Grande do Norte recorrendo à mitologia do cordel, à cavalaria medieval e à geografia física que formatou o habitante desta nação à parte. Tudo num tom de chiste e de fantasia sem limites e sem inibições, numa prosa que reafirma linha a linha a natureza e a força da literatura. Dizendo assim, parece que se trata de uma tese disfarçada de romance. Mas não é não – é uma viagem em lombo de jumento cheia de peripécias que diz muito sobre o que somos sem aborrecer nem simular grandezas inexistentes.

Somos, diz a geologia do livro, um reino inventado, à parte da monarquia européia da história oficial, composto à base de vivências e imaginações, forjado em restos do que foram outros reinos, alimentado por pedaços de lendas que, bem ou mal, aqui chegaram, à fronteira deste território que, embora componha apenas três estados do que é o Brasil convencional, comporta um continente em si de tão vasto culturalmente. Só é preciso ter olhos para ver. E quem não os tem, pode muito bem vê-lo pelos olhos de Ariano Suassuna no seu trabalho mais definitivo.

*Na barra de amostras de vídeos do YouTube, abaixo e à direita, trechos da série "A Pedra do Reino", de Luiz Fernando Carvalho.

Gracejos do destino

O destino e suas pistas. Quase piadas escritas e interpretadas por clown de natureza mística e discreta. Houve um dia, quando eu tinha lá meus 18 anos, em que precisei morar numa pensão em Recife, para poder cursar o primeiro ano do curso de Comunicação Social na Unicap de lá. Era um momento de total interrogação, ausência de certezas como a do trapezista sem experiência e rede de proteção. Eu não sabia se teria condições - quer dizer, dinheiro - para cumprir nem seis meses do curso. O carro que me levava para a pensão tinha o rádio ligado. E era dele que vinha o chiste do destino: tocava uma música de certo sucesso na época, na voz da cantora Simone. E era como se um narrador em off estivesse descrevendo o impasse sem certezas daquele momento da minha vida: “O que será o amanhã / Responda quem puder / O que irá me acontecer / O meu destino será como Deus quiser”, dizia a letra do sambinha que todo mundo com mais de 30 anos conhece.

Semana passada, nos embalos da mudança da casa no Lago Norte para o apartamento no Sudoeste, nesta nova encruzilhada em que estamos – sempre recomeçando, com preocupação mas evitando o lamento inútil – a situação se repete. Um dia antes da mudança, chegam os funcionário do caminhão para embalar tudo dentro de casa. E quem já contratou este tipo de serviço sabe como eles são rápidos, frios, eficientes e mudos. Num instante, sua casa está embalada. Quase tudo, melhor dizendo. Porque sempre sobra uma coisinha. Foi então que vi, ao lado da televisão, meio esquecido, um único DVD da minha coleção caseira. Os embaladores esqueceram dele, não sei por quais motivos , mas para todos os efeitos é como se o DVD tivesse ficado ali para me dizer algo. Era o DVD de um filme, desses que a gente compra meio distraído nas Lojas Americanas. A pista, a piada, o chiste do destino está no nome do filme: “O dia depois de amanhã”. Foi como ouvir de novo Simone tocando no carro enquanto o Recife passava pelas janelas a caminho daquela velha pensão e daquele futuro desconhecido.

sábado, 11 de setembro de 2010

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Adeus no frio


A ressaca de frio que se abateu sobre Brasília nos últimos dias parece um ritual de despedida da casa de onde nos mudaremos em pouco mais de uma semana. Se falar do tempo é uma tentação constante - e talvez seja por isso que a meteorologia é o ítem número um no puxar de conversas em paradas de ôniibus, consultórios médicos e afins - esta semana temos assunto de sobra. Uma onda de frio ligeiramente fora do tempo certo - que é junho/julho - trepida sobre as vastidões urbanas do Distrito Federal, indiferente ao recesso branco do Congresso, à propaganda eleitoral na tevê e ao clima de já-ganhou que vai cercando a candidata Dilma. Indiferente, sobretudo, à sensibilidade pra lá de ressecada das peles de quem habita este quadrado no coração do Brasil. E talvez não tão indiferente à nossa situação particular por estes dias, de aos poucos se despedir da casa onde moramos por quase dois anos, à base de uma proposta nova de vida que infelizmente não pode se realizar como gostaríamos. Não há de ser nada, o show deve continuar - mas que há uma espécie de ironia meteorológica neste frio inesperado que baixou os termômetros a 11 graus na madrugada de quarta para quinta-feira, ah, sim, isso há.

Na manhã gélica onde ao menos o sol, forte como convém, dá pinceladas de calor, observo os cantos e recantos da casa que mais me agradaram neste período passado aqui. E o mais apelativo deles não é a sombra daquela árvore que sempre tivemos dificuldade em precisar de que seja - a versão mais aceita é de um pé de nêspera, mas sei não - tampouco a sombra breve das árvores de um dos lados da fachada. O lugar preferido segue sendo um dos becos laterais, enfeitado pelo tom vermelho vivo de uma planta de pouca folhagem e muitas e derramadas flores. Uma poética hemorragia benigna em forma de planta. E à sombra dela, num similar de oitão sertanejo, a calçadinha de cimento dividindo espaço com a terra nua. Ali eu li praticamente todo o "Viver para contar" - as memórias de Gabriel Gaarcía Marquez que um dia trouxemos de Buenos Aires. E era ali que eu planejava ler tantas outras coisas, se tempo houvesse e oportunidade existisse. O fato é que em grande parte as demandas da própria casa - com seus caprichos de manutenção vigilante - acabaram tomando o tempo daqueles becos e leituras.

Dizem que sábado o calor volta. Se assim for, retornará a tempo de a gente se despedir melhor da casa que, claro, funciona e destaca-se muito mais em tempos de temperatura elevada. Uma das conclusões ao final do período é de que, tanto quanto está mais predisposta a respirar melhor em tempos de calor - ademais, calor que é uma constante em Brasilia, com exceção apenas daquele junho-julho - a casa e seus espaços amplos também pedem uma família grande. Muita gente, no dizer direto de todo mundo. Casa com pouca gente - um casal com um casal de filhos - é sensação incômoda de corredor vazio. Como morar numa catedral, habitar um armazém amplo mas exagerado. Estamos de mudança para o apartamento que compramos no Sudoeste, 120 metros quadrados do mais puro aconchego, pra ficar no tucanês renitente que teima em resistir aos avanços da camarada Dilma. Lado da sombra, praça arborizada em frente, comércio vasto nos fundos. É como trocar "o sítio pela rua" - e quem é do interior entende o significado da expressão. Além do mais, no circuito Sudoeste-Cruzeiro-SIG faz muito mais calor do que aqui, nesta pontinha de Asa Norte-Lago Norte pelo qual sempre cultivamemos, meteorologia à parte, um carinho de ex-morador por tantos anos. Mas o calor é sempre a nossa meta, alcancável ou não. O calor que nos espera na nova moradia, o doce aquecimento global que embrulha as ruas e dunas de Natal e, em último caso, como um filme que roda pra trás pra não deixar que a gente esqueça as referências fundamentais, a quentura do Seridó.

De qualquer maneira, esse frio ocasional e fora de época que nos serve de ritual de despedida da casa há de passar antes que o caminhão de mudança estacione aqui em frente.

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Mais notas de viagem


Vocês não devem saber, mas há duas semanas morreu em Brejinho, município pernambucano bem na divisa com a Paraíba (foto), o muito querido Inácio do Mercadinho. Matou-se o homem. Fiquei sem saber se por dívidas – difícil, a julgar pelos tempos de prosperidade econômica que podemos ver no interior nordestino deste 2010 – ou por outros motivos. Só sei, porque vi com meus míopes mas ainda bons olhos, o tamanho do cortejo que levou o corpo ao cemitério da cidade.

Pra falar a verdade, praticamente participei do cortejo. Não por vontade própria, mas por circunstâncias da viagem de volta, de carro, de Acari até Brasília. Foi ainda no início da viagem, quando encontramos aquele povão num entroncamento de rua, com praticamente todas as motocicletas do planeta orbitando em torno. Era o cortejo fúnebre de Inácio do Mercadinho a caminho do cemitério que, para o atraso de nossa viagem, fica na beira da estrada, mas já bem distante da sede do município. Resultado: além do cortejo propriamente dito, formou-se outro, dos carros em trânsito, esperando toda aquela gente chegar, pacientemente como convém aos moradores de uma pequena cidade do sertão nordestino, ao cemitério municipal. Claro que foi preciso parar o carro num acostamento e deixar o enterro seguir, o caixão encontrar sua cova ou sua tumba, a cidade chorar seu morto querido. E foi tudo o quanto conseguimos saber, que Inácio do Mercadinho matou-se, como nos disse uma senhora com aquela expressão de quem conhecia o morto e achava que a gente também tinha plena consciência de sua existência neste mundo.

São coisas de viagens de carro e já estamos bem acostumados, depois de muitos outros episódios de jornadas antigas, tempos em que, sem os meninos, eu e Rejane corríamos por aí, entre Trancoso e Itapoama, Bahia e Pernambuco, BR-116 e Penedo, rio São Francisco e costões de Itacaré. Desta vez não seria diferente e a viagem de retorno, que naturalmente é bem mais cansativa do que a ida, foi trazendo para o para-brisa os inserts de outras férias, as conexões que a estrada oferece ao tédio eventual de um trecho menos movimentado.

Foi bonito, por exemplo, ver aquele vale de Patos, onde picos naturais começam a ganhar a concorrência de envergonhados arranha-céus enquanto a cidade toda se espraia como as ondas de um lago onde alguém atirou a pedra que o fez crescer. Sair de Patos no rumo do interior pernambucano foi luta, porque o aglomerado urbano que já foi um cidadela de interior agora parece a Campina Grande dos anos 70, que já então fazia jus ao nome.

Foi curioso constatar outra vez o quanto qualquer posto de gasolina hoje virou ponto de concentração de uma frota absurdamente grande de caminhões sempre carregados, como foi impactante ver, no interior da Bahia, o retorno dos “papa-jipes” voltando descarregados depois de deixar a nova frota de automóveis do país nas concessionárias do litoral. Como foi triste ver que, entre quilômetros de rodovias refeitas como há muito se esperava, havia também as estradas estaduais da Paraíba cravejadas de buracos que não condizem com a nova realidade do país. O que nos leva a lembrar o que houve neste estado, com a substituição pela Justiça Eleitoral do governador em mandato, como conserto atrasado de irregularidades de campanha – num processo cujo resultado, por mais que eticamente elogiável, é uma descontinuidade que pune, em último caso, o cidadão. Para quem estiver de malas prontas: evite o percurso Patos- Várzea e sua viagem será bem melhor.

Em contraste, a economia de Serra Talhada, no sertão pernambucano, deve estar mesmo bombando, como se diz. Experimente ligar o rádio quando passar por lá e você verá que para cada dez comerciais se ouve uma mísera música: conseguimos, com esforço e persistência, ouvir Maria Bethania (ela mesma) cantar um velho e clássico sucesso entre a algaravia ensurdecedora de mil propagandas de farmácias, supermercados e similares na barulhenta FM Vila Bela, 94,3 no seu dial, caso tenha se interessado em checar um caso de sucesso comercial a confirmar a grandeza do novo PIB nordestino. Liga lá, fica na terra de Inocêncio Oliveira, o que pode não ser muito auspicioso mas confirma também que é possível crescer em meios às contradições.

Sim, crescer na contradição, por mais que os acadêmicos e os mais puristas não gostem ou não admitam. Mas, como dizia aquele carnavalesco simpático, quem gosta de estagnação é intelectual. Pobre quer mesmo é sair dessa condição – e não se pode condenar ninguém por isso, pode?

sábado, 31 de julho de 2010

Retorno antecipado

A interrupção deste diário de viagem mal se abriu o capítulo da chegada já deixa uma pista de que algo não saiu conforme o planejado: é verdade, a viagem Brasília-Acari-Pipa-Natal teve que ser alterada mal chegamos ao primeiro ponto de parada. Na verdade, antes de chegar a Acari, ficamos sabendo que teríamos que voltar mais cedo a Brasilia, por causa do compromisso de Rejane com uma universidade local. Rejane foi chamada a dar aulas, num acerto que vinha sendo costurado, antes da viagem, sem muita certeza. Agora, é fato: a professora entra em ação nesta segunda-feira, nas salas do Unieuro, pontinha da Asa Sul.

Por isso, o que seria uma viagem de duas semanas foi encurtada em bem mais de quatro dias, já que teríamos que voltar, naturalmente, como fomos: de carro. E isso significa três longos dias vendo asfalto, sertões e caminhões pela frente. Tudo isso já se deu - e tomamos o que o velho e saudoso Kildare Rodrigues chamaria de "uma surra de sertão" durante este retorno. Mas as notas de viagens continuam gravadas a caneta no indefectível caderno e em brever serão aqui despejadas. Por hora, a sugestão é ler a postagem "Pneu no asfalto", devidamente apregoada lá no Sopão.

Ainda a anotar o curtíssimo espaço de tempo que ficamos em Natal e seus motivos: o excesso de chuva, o cinza desestimulante desta época do ano (embora desta vez visivelmwente mais acentuado), e finalmente uma gastrite inesperada que se instalou nas entranhas deste blogueiro desde o momento em que pisamos a cidade do sol. Nenhuma relação entre as duas coisas - apenas consequencia de horas a mais de estômago vazio em função do relógio alterado que ocorre em qualquer viagem. Por tudo isso, foi uma viagem meio fantasma e solitária: não deu pra ver ningúem além da família. A gente mais uma vez pede desculpas a Nossa Mana, Carlos Magno e Rosa e filhos, Adriano e Flávia, Carlão, Vilma e todos os outros cujos nomes não estão aqui mas se sentem representados.

Não deu, gente. Fica pra próxima. A viagem, no fim das contas, serviu mais para arejar a mente neste período de recomeço de tudo que se abre à nossa frente.

segunda-feira, 19 de julho de 2010

Chegada

Três mil quilômetros, centenas de caminhões ultrapassados, duas noites em hotéis de beira de estrada, incontáveis horas na companhia de Bernardo e Cecília no espaço de uma Palio Weekend e aqui estamos nós, finalmente, em Acari City. Agora são seis e meia da noite de segunda-feira e não faz mais de três horas que chegamos, nem tão exaustos quanto imaginávamos mas de qualquer maneira ainda meio desorientados pelo excesso de horas de viagem. Por mais que a gente não queira, parece que o asfalto e suas listrinhas da sinalização horizontal ainda estão passando, correndo, sumindo e reaparecendo na visão da gente.

A primeira parada aqui é para dizer da tranquilidade com que a viagem transcorreu, pouco lembrando aventuras anteriores que fizemos uns seis, sete anos lá para trás, qunado essa longa travessia Distrito Federal - Rio Grande do Norte, por mais divertida que fosse no seu transcurso, invariavelmente trazia em seu final, na chegada, uma sensação de cansaço e exaustão como se a gente tivesse subindo o pico da Neblina. Agora, não: e mesmo com a carga a mais das crianças que, naturalmente, têm a tendência de se cansar até mais do que a gente, claro, no sentido do esgotamento não físico mas mental. E quando as crianças ficam entediadas na estrada, quem tem uma delas em casa sabe o que isso significa: brigas entre elas, gritos desnecessários, farras de colegial que elas ainda não são, enfim, o tipo do descontrole que tira a paciência e a concentração dos pais. Nâo digo que não tivemos de tudo isso um pouco, mas foi muito menos do que a gente esperava.

Bernardo se impressionou de ver um burrinho amarrado num pé de pau numa rua de Belém de São Francisco, em Pernambuco - e depois disso festejava toda vez que via um bicho soilto na cidade, o que não muito raro porque esse município do sertão nordestino parece ter as ruas tomadas por bois, vacas e cavalos a esmo. É uma bela cidade, não me entendam mal, mas realmente tem alguma coisa de indiano que a gente percebe quando vê tanto ruminante vagando assim, por exemplo, no "baixo" local da noite de domingo, que foi quando passeamos um pouco por lá. Enfim, isso é apenas uma das muitas notas curiosas do diário de viagem de Bernardo, em sua primeira incursão pelo interior do país no esquema pneu no asfalto.

Cecília, cuja idade permite uma fruição um pouco maior dessa jornada, comportou-se como a senhorinha que ela é na intimidade de casa. Dormiu cedo quando foi preciso, acordou mais de uma vez já dentro do carro em movimento em plena estrada sem reclamar, "cuidou" do irnmão tanto quanto foi possível e tirou fartas sonecas quando a viagem não trazia nada que lhe apetecesse. De memória, assim , rapidamente, registro como destaque do seu bloco de notas de viagem imaginário a contemplação pela janela de inúmeros sítios e fazendas, daqueles de beira de estrada que mais parecem ilustrações de livro infantil e que ela, com toda certeza, daqui a pouco estará desenhando em seus cadernos e folhas avulsas.

Para os adultos, o que mais impressionou foi a imagem de punjança ecoômica do país que o trânsito de caminhões anunciou, especialmente no interior da Bahia. O tal espetáculo do crescimento foi uma constante nas cargas e mais cargas que vimos transitando pelas estradas que usamos. Sem falar nas condições das próprias estradas, boas como nunca vimos em nossos 16 anos de moradia em Brasília (durante os quais fizemos várias vezes esse mesmo percurso). E a constatação de um certo estado de espírito impresso em rostos, fachadas de casas, aspecto geral das cidades às margens das rodovias que confirmam a emergência daquele outro Brasil de que falei em postagens anteriores. E ainda a comprovação de que o Brasil é um país em obras, tantas foram as que a gente viu no percurso - um país completamente novo, em tudo diferente daquele que cruzamos em anos remotos, quando as estradas no interior da Bahia mais pareciam trilhas de um sinistro motocross do descaso com o bem público.

Mas tudo isso é assunto para outras postagens, que a recuperação do cansaço imediato permitirá que sejam escritas. Este papo balancial de resultado de viagem está só començando e novas conversas virão.

sexta-feira, 16 de julho de 2010

Arrumando as malas

Amanhã cedo, bem cedo se tudo der certo e a gente conseguir contrariar nossa própria tradição de desncanso em dia de viagem, pegamos a estrada rumo a Acari-Pipa-Natal. Tenho uma historinha à guisa de capítulo inicial deste diário de férias quinzenal. Uma pequena narrativa que dá uma perspectiva menos familiar e pessoal à jornada que temos pela frente e pela qual estamos ansiosamente esperando. Nem preciso explicar melhor, basta contar a tal história que o conceito é auto-explicativo.

Dia desses, num bate-papo de rotina com amigos no trabalho, uma colega - apenas por coincidência, também potiguar - relatou as impressões de viagem que teve uma tia dela, que mora há vinte e tantos anos em Brasília mas, sendo também potiguar, costuma ir periodicamente de carro até o estado do elefante. Segundo a colega, a tia - que, notem bem, sempre vai de carro, pneu no asfalto, o que corresponde quase uma câmera em movimento a captar a realidade do país - voltou encantada da mais recente visita a Natal. Contou à sobrinha, minha colega, que em anos de viagens na mesma rota nunca tinha visto tanta gente com sorriso no rosto, tanta estrada em boas condições, tanta cidade crescendo a olhos vistos.

Só coisa boa - e isso aqui não é propaganda eleitoral, mas apenas o relato frio e tão fiel quanto possível do que me contou a colega de trabalho. Colega que não é nenhuma militante de carteirinha daquele partido da estrela vermelha e para tantos maldita. Foi, repito, apenas um relato, informal, espontâneo, autêntico que a colega fez sobre o que ouviu da tia, que construiu esse painel brasileiro a partir da viagem que fez sem ter que responder a nenhuma pesquisa, gravar nenhum depoimento para a tevê ou coisa parecida.

Foi uma constatação simples, feita por uma pessoa comum. Desinteressada. É verdade que, segundo a colega, a tia fechou sua explanação com uma frase que é uma declaração de voto. Mas isso soou apenas como uma consequência do quadro contemplado:

-Estou decidida - disse a tia da colega - Vou votar em Dilma.

quarta-feira, 14 de julho de 2010

On the road again


Os dias são de expectativa: sim, vamos cair na estrada de novo, como há muito não fazemos, menos ainda com a companhia de dois ajudantes de tenra idade, 5 e 3 anos de muita disposição para enfrentar (tomara!) quilômetros de asfalto contornados por casinhas de janelas coloridas. Tomara mesmo: é a primeira vez que topamos enfrentar os 3 mil quilômetros que separam Brasília de Natal - via Acari, claro - na base do pneu no asfalto, levando os meninos na garupa do palio. Mas vamos, porque a vontade é muita, a necessidade imensa e a oportunidade - não muito animadora em sua natureza primeira, já que Rejane não ficou naquele trabalho do Sindijus - surgiu. E vamos, saindo no próximo sábado com uma agenda de conversa no bolso para desfiar quando Cecília e Bernardo - especialmente Bernardo - estranharem o embalo do motor e a monotonia da paisagem, apesar das janelinhas coloridas em trânsito.

A expectativa traz à mente, inevitavelmente, imagens e enxertos de viagens outras dessa mesma natureza, em época sem Cecília e sem Bernardo. Tempos em que era possível presenciar uma cena brasileira no litoral da Bahia, com famílias esfomeadas enchendo sacos com restos de farinha desabada em desastre de caminhão na saída de Itabuna para Ilhéus. Ou então sequencias mais poéticas, como o inesperado "mirim" de futebol só de meninas disputado em terreno de beira de praia nas beiradas de Itacaré. Ou ainda a imagem hitchcooquiana de uma caminhonete que saiu da sua pista e veio, e veio, e veio e, ôpa, tá vindo mesmo, na nossa direção, bem de frente pro nosso parachoque de uno mil quando a gente já estava quase chegando a Caicó. Desviou no último minuto o maluco - ou por outra, agora lembro bem, fomos nós que desviamos até o limite do derradeiro espaço no acostamento da nossa via, e o que quer que tenha sido aquela pessoa na caminhonete de livro de Stephen King se foi assombrar outras almas. Nunca entendemos o que foi aquilo.

Só sabemos que coisas assim - a malta enchendo sacos com os restos da carga caída; o futebol das meninas; o motorista maluco na contramão - são coisas da estrada, para onde não vemos a hora de retornar. A aventura toda - estrada, Acari, Pipa e Natal, se tudo sair conforme o planejado - vai durar duas semanas de férias contadas para mim e pausa para Rejane. O diário de bordo, naturalmente, virá, em postagens exclusivas aqui da "Hamaca", enquanto a matriz "Sopão" segue bufando vistosa ao versar sobre temas de natureza menos familiar. Pode ser menos importante a "Hamaca", mas com toda certeza é mais divertida - e não sou eu que vou arbitrar disputas vãs de vaidades vazias entre meus dois produtos falidos. Até porque estou praticamente de férias e mal tenho tempo de pensar em outra coisa que não seja a velha estrada outra vez deslizando diante dos meus olhos.

Espero a companhia amiga da leitura de vocês nas paradas do caminho.

terça-feira, 13 de julho de 2010

A falsa investigação de Stephen King


"Christine", diferente do que o nome sugere, era um carro. Mas "Carrie" é uma garota mesmo. As duas são criaturas de Stephen King, cuja imaginação é capaz de fazer um monossilábico "se" transformar-se em narrativas com um poder de imersão que faz o leitor esquecer de si mesmo - e seus problemas eventuais, o que vem bem a calhar. Funciona assim: "e se" um velho carro tivesse o poder de tomar posse do alma de um adolescente desajeitado, fazendo dele um seguro, mas perigoso, agente de sua própria fúria? Isso é "Christine", um clássico para quem não tem vergonha de beber o leitinho estragado da cultura pop mais estandartizada. "E se" aquela adolescente desajeitada de quem a turma toda tira o maior sarro descobrisse que tem poderes telecinéticos capazes de mover a seu bel prazer desde um palito de fósforo até um carro em movimento, o que faz dela uma assassina vingativa em ponto de bala?

Isso tudo é porque, nas intempéries da vida, eu andava atrás de uma leitura evasiva - mais uma - para atravessar o temporal. E lembrei daquela nova edição de "Carrie, a estranha", primeiro livro de Stephen King - e com o qual ele conseguiu sustentar dignamente esposa e filhos - que virou um filme não menos pop nas mãos do sanguinário chique Brian de Palma. Fechei os olhos e fui a ele, pronto para afundar na narrativa das mil peripécias aterrorizantes que tal garota haveria de desencadear. O resultado é que encontrei um livro de estilo inesperado, feito em forma de fragmentos de relatórios misturados a narrativas tradicionais, com colagens de trechos de falsas resportagens, enxertos de interrogatórios entremeando as partes.

Enfim: no teor, "Carrie" é um estudo ficcional sobre os poderes retraídos - ou não - da adolescência vivida em bandos; um ensaio narrativo sobre os efeitos e a mecânica da segregação das high schools. Já na forma, é um inteligente e divertido "falso documentário" - gênero em moda no cinema de hoje - sobre a ocorrência de fenômenos paranormais protagonizados por uma adolescente mal ajustada numa cidadezinha do estado do Maine, EUA. Borges é muito pra comparação - mas a gente tem que ter o desprendimento de dizer que King, este legítimo produto da literatura mais mercantil (atenção que isso, embora não pareça, é um elogio), realiza aquilo que o cego mais cultuado do mundo literário preconizou.

Porque "Carrie" é praticamente todo feito com base em relatórios recriados, documentos imaginários, testemunhos factíveis, livros citados - inclusive com o charme das páginas etc etc. Labirinto narrativo vulgar, mas eficiente - se você destinar ao descompromisso da leitura o mesmo empenho que reserva ao altar da santidades literárias.

quinta-feira, 17 de junho de 2010

Cecília vê a Copa


Se o futebol do Dunga não mata a fome de gol do cidadão brasileiro, paciência. Cada um que encontre uma maneira de compensar a ansiedade. Aqui em casa, eu achei a melhor dessas maneiras: assistir ao jogo com Cecília, tentando explicar todos os mistérios do esporte para esta atenta, criteriosa e muito esperta menina de 5 anos quase completos. Nada é mais interessante do que a minha pessoa que muito pouco entende do assunto procurando um jeito de ensinar para Cecília uma rasas noções do ludopédio global e dominante dos nossos tempos. Confiram nas cenas dos próximos parágrafos.

Cecília, por mais que eu insistisse, nunca chamava a seleção brasileira de "Brasil", como todo mundo faz, dos oito aos 80 anos. Para elas, somos "os amarelos". E, claro, não podemos perder.

Cecília não conseguiu entender porque o sujeito chamado de "goleiro" não gosta de gol! A dúvida dela é muito simples: se o objetivo do jogo é fazer "gol (ou seja, fazer a bola entrar naquela trave revestida por uma rede), porque o goleiro, justo ele que está ali bem pertinho, se opõe? "Ele não gosta de gol?", pergunta Cecília, impressionada.

Cecília ficou intrigada com a quantidade de vezes que uma certa palavra é repetida por quem assiste a um jogo de futebol - no caso, eu. Depois de eu pronunciar a tal palavra umas cinco vezes, sempre com um sobressalto e cada vez mais em volume mais alto, ela reagiu: "E você vai ficar dizendo 'quase' o tempo todo?"

Cecília ainda contou com uma ajuda de Rejane, que veio ver só um pouquinho do jogo do Brasil contra os coreanos vermelhos do norte. Intervenção de Rejane: "Gol, Cecília, é quando o Brasil bota a bola dentro da trave". Eu, na minha estupidez futebolística, ri por dentro e perguntei pra fora: "E quando a Coréia bota a bola dentro da trave não é gol não?" Muito justo o critério de Rejane para a Copa do Mundo.

Cecília, pra completar, ainda me perguntou daqui a pouco: "E quando a bola entra no cacho..." "No cacho, Cecilia?" E a ficha rolando na cabeça, procurando o buraco onde cair. Até que: "Ah, bom. Não é bola no cacho, não, Cecília; é boa na rede."

Mas do que Cecília mais gostou - até mais do que o gol, porque justo quando a gente saiu pra beber um copo de água foi que o jogo desencantou - foi do técnico. Sim, senhor: por causa do nome dele. Passamos o jogo inteiro naquela de "olha o Dunga / Olha o Dunga / Olha o Dunga de novo". Técnico de futebol com nome de anão de Branca de Neve tem mais é que cair nas graças das crianças. E obviamente, o técnico da Coréia do Norte também ganhou seu apelido: "Soneca".

E era um tal de "Olha o Dunga de novo", seguido de "E cadê Soneca?"

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Lost na biblioteca


Justo agora, quando só se fala no episódio final da série Lost, é que fui assistir aos primeiros capítulos. Pois enquanto há meio mundo de gente perdido em devaneios para entender realmente o que foi este final, a minha pessoa se encontra afogada em espanto tentando absorver o impacto do seu início. Encerrada de maneira a satisfazer ou não a sede de respostas dos fãs e do público eventual, Lost é este fenômeno midiático que fez as pessoas voltarem a passar um tempo maior diante da televisão.

Já deve ter alguém aí fora reclamando do que acabei de dizer. Mas é televisão mesmo: não importa se vista num site da internet ou acompanhada por meio de um telefone celular. Porque o conteúdo é de televisão, independente do suporte onde a série foi transmitida ou disponibilizada, para usar uma palavra mais apropriada aos tempos atuais.

Se você quer saber mais sobre essa teoria de que Lost reafirma o poder da televisão –aquele bicho que parecia fadado à ruína, ou pelo menos a um terceiro plano, com o advento das transformações da era digital – corra à livraria mais próxima e peça o livro de um cara chamado Newton Cannito. É “A televisão na era digital”, título meio óbvio lançado pela editora Summus, que vem sublinhado por uma legenda mais instigante: “Interatividade, convergência e novos modelos de negócios”.

Cannito, que também é um dos autores do seriado “9mm: São Paulo”, dá um banho de frescor teórico no leitor ansioso por entender melhor esse mundo em transformação das novas mídias. E o faz sem se prender a idéias tão anacrônicas quando as válvulas da tevê da sua vovó. A tese dele é de que o digital, ao contrário do que se pensa, reforça o elemento narrativo na tevê ou no computador (filmes, novelas, seriados), ainda que numa convivência com a fragmentação típica das mudanças em curso. E Lost, o seriado, é justamente um dos exemplos que ele usa. Há, no livro, um estudo de caso sobre o programa. Ainda não cheguei a esta parte – e nem é preciso se o caso é perceber a extensão do impacto da série.

Referências dispersas

Quem se der ao trabalho de rever (ou ver, como foi o meu caso) os quatro primeiros episódios de Lost vai constatar a validade de várias das idéias de Newton Cannito: que a série é um feliz exemplo de conjugação de elementos narrativos capaz de prender a atenção de um terráqueo tanto quanto nos tempos dos contos das mil e uma noites. Há um clima permanente de mistério e apreensão que vai minando os sobreviventes de um acidente aéreo; há o cenário de uma ilha de localização incerta, povoada por fenômenos misteriosos que se sucedem; há essa sucessão de eventos sem explicação, que surgem em camadas sem que os personagens tenham tempo de se refazer de um susto e já estejam tomando outro; há as referências dispersas meio por acaso entre os episódios que divertem quem acompanha cada um deles e dá a sensação de intimidade e de jogo com a narrativa.

Há, finalmente, um elenco de personagens que, mesmo parecendo à primeira vista um grupo de pessoas com perfis bem definidos, também sugere, com alguma sutileza, características inesperadas. E a estratégia narrativa seriada se presta bem a isso, ao liberar só aos poucos como peças de um quebra-cabeça as informações adicionais – e inusitadas – sobre cada um deles. É uma maneira de narrar que permite aos público antever, pela própria cultura televisiva que todos têm, o que pode vir pela frente.

É algo muito novo e ao mesmo tempo feito com base na mais clássica linguagem do seriado televisivo – recebemos os sinais de que algo vai acontecer, mas às vezes somos surpreendidos por algo que contraria nossa expectativa. De tradicional disfarçado, mas nem tanto, há o claro paralelo com o corpo de jurados de um velho programa de auditório dos tempos da tevê analógica que, para Cannito, também tendem a ganhar força com o advento do digital. Ainda que isso aconteça por alusão e não por uma recriação direta – e se você lembrou de um negócio chamado Big Brother, acertou no alvo.

É curioso que, no momento em que este programa de televisão provoca a discussão até esperada sobre a qualidade de seu final, chegue a notícia de que uma lei sancionada no Brasil obriga todas as escolas, públicas ou privadas, a manter uma biblioteca. Parece haver um fosso entre essas duas informações que ilustram os mesmos portais de notícias. Mas elas são lidas no mesmo país, tal a nossa – para não usar palavra pior – diversidade regional.

Diz o noticiário que o estado recordista (recordista para pior, entendam bem) em cidades sem bibliotecas é o Maranhão. Isso lhe sugere alguma coisa? São 61 municípios sem sombra de qualquer coisa que se assemelhe a uma coleção de livros, publicações, vídeos ou qualquer outro material público disponível para leitura, estudo, pesquisa.

Infantis com gravuras

Qual o paralelo possível entre Lost e a falta de bibliotecas em 445 dos 5.565 municípios brasileiros? Vários, mas vamos ficar apenas em um: a biblioteca, seja pobre, rica, moderna ou anacrônica, será sempre um canal de acesso de estudantes sem maiores recursos ao mundo da narrativa minimamente sistematizada.

A mesma narrativa que um seriado como Lost reforça em plena era da fragmentação total está disponível nas bibliotecas, em capítulos de livros que vão desde os infantis com gravuras até os romances mais cabeludos e canônicos. É questão de acessar, para usar uma palavra da moda.

E de, acessando, fazer uso desses elementos para construir idéias, estabelecer conexões, fazer comparações, confirmar ou desmentir hipóteses, cotejar dados, relacionar trajetórias. Enfim: para se educar, uma atividade que, no final desta cadeia, pode-se dizer que é o elemento decisivo para fazer um país não precisar, num futuro próximo, baixar uma lei obrigando que se faça o óbvio – que toda escola, por mais pobre ou menor que seja, tenha uma biblioteca.

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Pra ouvir do início ao fim




Há um milhão de postagens atrás, anunciou-se o plano de listar aqui os dez discos que não deveriam jamais, por decreto algum do mercado das artes, ter suas faixas vendidas separadamente. O que motivou esse plano foi a notícia de que a banda Pink Floyd estava acionando judicialmente sua gravadora por estar vendendo, avulsas, faixas do célebre álbum "The dark side of the moon" que, como todo mundo que não vive em Marte sabe, compõe uma obra conceitual única, do primeiro ao último som que se ouve em vinil ou CD. Clique aqui para ler ou reler a postagem original sobre o assunto. E agora, parte da lista prometida, com os primeiros cinco discos, todos em português que é pra não precisar nem de legenda:



1.A PELEJA DO DIABO COM O DONO DO CÉU (ZÉ RAMALHO): da faixa-título inicial ao "Frevo Mulher" recriado (depois de estourar na voz de Amelinha) que fecha o disco, temos uma obra fechada que mistura as figuras do sertão com a mitologia plenetária; repentes, galopes e outras métricas musicais nordestinas; tudo numa poética à parte que só o profeta profano Ramalho consegue construir. Tudo bem: é até interessante embaralhar as faixas todas do disco, mas também soa como um crime picotar todo esse material num playlist caótico. (a propósito: tem mais Zé Ramalho na amostra de vídeos do youtube, abaixo, à esquerda)


2.ANGELA RO RO -
É um escândalo que a cantora carioca seja lembrada pelas gerações atuais apenas pelos escândalos que protagonizou na, vá-lá, juventude. Quem ficar nisso vai deixar de enveredar pela bela obra blues-pop-mpb desse vulcão emocional que destila sensibilidade pura cada vez que tecla um piano e solta a voz grave como um trovão bêbado. "Amor meu grande amor" é uma materlada até hoje, mas nem por isso deveria ser vendida separada de suas irmãs igualmente tinhosas, como "Gota de sangue".

3.SAUDADES DO BRASIL (ELIS REGINA) - É o registro do show homônimo e, como tal, só faz realmente sentido, ou pelo menos um sentido maior, de transcendência, se ouvido de ponta a ponta, de um disco a outro. As vinhetas que, mais do que separar, intercalam as músicas, são uma prova disso. E é tanta beleza em forma de música que só cabe em duas bolachas ou dois CDs. Tem desde o tecido musical semi-hemorrágico de "Moda de sangue" até a performance marota de "Alô, alô, marciano".

4.BEBADOSAMBA (PAULINHO DA VIOLA) - Paulinho, todo mundo sabe, é bissexto em discos. O intervalo entre um e outro dura anos. Quando este Bebadosamba chegou, a espera vinha de longe e a chegada foi bem comemorada. Era mais uma leva de belos sambas, como "Timoneiro' e "Ame". Eu fico me perguntando como é que alguém consegue ouvir uma faixa desse disco sem continuar quieto no seu canto para seguir escutando as demais. Se é melhor comprar logo tudo na loja virtual, porque não adquirir então o CD inteiro? Tem barato que sai caro, viu?

5.BABY CONSUELO AO VIVO EM MONTREUX - Tá bem: citar disco que reproduz shows ao vivo para defender a venda integral das músicas de um CD é moleza. Mas você já ouviu esse aí? Tem a eletricidade de "Toda donzela tem um pai que é uma fera" e tem a mansidão disfarçada de "Eu e a brisa", tudo com aquela sibilante e criativa sonoridade típica da música brasileira mais pop do iníciozinho dos anos 80. Não dá pra ficar só numa faixa e apertar os pitocos do tocador de mp3 sem sentir uma forma de prejuízo na cachola. É no mínimo uma estupidez e no limite uma burrice. Alguém aí tá a fim de parecer pouco inteligente? Então tá bem, que se habilite.



Breve mais 5 íntegras obrigatórias pra vocês.

quarta-feira, 5 de maio de 2010

Segismundo e a Grécia


Chegou carta de Segismundo Siqueira, fumaçando de quente com as últimas notícias do Urtigão acariense da serra do Bico do Papagaio. Vamos à lettera:

Cabra Tião, salve sempre!

Esta noite, vislumbrando o noticiário do mundo na bola de cristal marca sansung que meus netos me deram no Dia do Índio, apascentei a alma quanto a uma das culpas que carrego. Explico, tão detalhosamente quanto possa eu ou quanto suporte sua pessoa. Foi em 1983, quando afinei a casca do meu couro nas baionetas da polícia. Ano de seca brava, esturricação genérica, bicho morrendo, esqueleto de gado nas beiradas do caminho. Coisa triste, tempos outros. Foi-se, como quisera. Mas para domesticar a fome a ponto de a criatura se manter em pé foi preciso medida radical de desesperado: o saque, que as bolas de cristal daqueles tempos, chuviscadas como não se vê mais à sombra das arupembas modernas, também noticiaram.

No saque, fui um deles, prezado. Estava lá, correndo dos homens com o peso de uma saca de feijão bem afanado nas costas. Não sei se só por impaciência do estômago ou também por revoltas do espírito. Mas estava lá e fui xingado, em impropérios municipais xinfrins e também em letras elegantes de jornais e revistas das capitais. Flagelado era o mínimo que se dizia de nós, com aquela mistura de desprezo e preconceito fermentado. Agora, pois, e volto ao presente da atualidade, vejo na bola vitrificada da sansung que coisa parecida - ou idêntica, que as variações das manifestações humanas de desespero se igualam na intensidade das revoltas - está a se passar em terras do país da Grécia, naquele mundão consagrado que nasceu antes da gente e se chama Europa. E, ao que vejo na sansung colorida como o quê, o mundo todo está até que bem compreensivo, achando motivos para amparar o furor da greguaiada de molotov debaixo do braço. Apois, sim - veja mesmo. Como dizia minha ancestral Mariquinha Tapioca, que Deus a tenha, "sostô você". Se fosse nós, aqui das bandas do Bico, os trabucos já estavam cantando suas ave-marias.

Atraído por um anúncio na mesma sansung cheia da novidade, assaltou-me uma vontade danada de descer a serra e assistir ao cinema. Sim, senhor, o velho cinema onde não piso desde a estréia de Vicente Celestino no tornei-me um ébrio de chorosa lembrança. Que filme melhor que aquele duvido que de então se tenha sido feito. Pois a sansung diz que tem, e que se chama "Homem de Ferro 2" e que todo mundo, até eu aqui no meu muquiço, tenho que me manifestar para assistir - e que caso contrário posso me anular do mundo como pessoa inexistente, como se já não fosse essa minha profissão de vida diária. Mesmo assim, mexeu com os brios. Quis ir ver, em 3D como obriga a propaganda. E só não fui porque nem Caicó nem Currais, muito menos Acari, que é pertinho e não precisa de gastar gasolina para chegar, não tem, descobri estes dias, cinema 3D para me apresentar à fita. Fiquei fulo, pois queria saber o que danado tem esse Homem de Ferro em matéria de mau humor, cinismo e cansaço do mundo que eu, socado aqui nos altos dessa serra de ninguém, não tenha.

E o mundo aí, pagando os fundos dos fundos para assistir ao que a vida verdadeira exibe de graça. É muita moda, prezado. Ou por outra: eu, que sempre me achei um xique-xique em forma de gente sem ligação alguma com o mundo, estou muito do por-fora. Porque o Homem de Ferro 2, com sua convocação obrigatória para as massas se derrearem diante do rancor cultivado, diz sobretudo que eu, e ninguém mais que eu, estou muito é na moda. Só falta agora escrever um livro e desfilar em autógrafos nas livrarias.

Pra encerrar, contar de visita que recebi estes dias. Ciro Gomes, meu sobrinho de estimação, veio aqui. Pedir a bênção, injuriado. Acalmei o menino com um copo de água de riacho. É por isso que ele se sumiu - não é nada de ter ido pro estrangeiro não, conversa pra boi dormir.

Até a próxima.

Do amigo sempre pronto para uma patada,

Segismundo.

segunda-feira, 3 de maio de 2010

Paralamas na capital


Não é por velhice antecipada, artrite precoce ou desistência completa dessa juventude que já vai dobrando a esquina. É mais devido a obstáculo bem concretos, como filhos pequenos, trânsito difícil e necessidade mínima de sossego. Por tudo isso, eu jamais imaginava que, a esta altura da vida, ainda iria sair de casa para assistir e vibrar com um show dos Paralamas do Sucesso em campo aberto no panorama da capital. Uma chance não calculada de reencontrar, da platéia para o palco, aquele trio de garotos com os quais minha geração cresceu, tirou diploma, fez uma vidinha profissional pulando de um emprego assim para outro melhor, teve filhos e coisa e tal. Ao mesmo tempo em que a gente ia se esquecendo deles, no processo natural das coisas que vão e vem.

Pois o tempo passou e parece que fez um intervalo, merecido intervalo naquele feriado dos 50 anos de Brasília, o 21 de abril passado. Quando vi, estava lá, no gramadão da Esplanada dos Ministérios, rodeado de uma gente animada que, mais novos ou mais velhos, pareciam todos ter a minha idade. Rejuvenescidos todos, só por arrastar da memória, como quem puxa uma velha rede de pescaria cheia de buracos e pepitas, as letras de canções em que o tempo tratou de botar moldura e pendurar na parede. “Mesmo querendo, eu não vou me enganar, eu conheço seus passos.”

Assistir, aos 44 minutos do segundo tempo, que corresponde à minha idade atual, a um show do Paralamas, distinguindo ao longe, como pontinhos no palco, Bi, Barone e Herbert na sua cadeira inquieta, foi como me teletransportar, sem os danos da física e os efeitos colaterais da saudade, para um distante estádio Juvenal Lamartine, na Hermes da Fonseca, em Natal, no não menos distante ano de 1988. Show do Paralamas, sobre o repertório novinho do LP Big Bang. Catarse musical coletiva para expulsar pelo suor e pelo riso as raivas daquele tempo Sarney. Mas os inocentes escândalos de antanho ao menos conviviam na boa com amizades que pareciam fadadas a durar para sempre.

* Na barra de amostra de videos, assista a velhos clips do Paralamas.

quarta-feira, 28 de abril de 2010

Uiquipédia do Segismundo

Segismundo Siqueira, poeta involuntário, é um velho caquético e amigo que cospe versos à guisa de imprecações e gracejos. Se você o encontrar na curva do caminho, esteja pronto, que dele pode vir tanto um soneto com rimas pobres sobre a palavra amor quanto uma maldição ciganesca organizada sobre monossílabo bem menos nobre. É o seu cartão de apresentação - digo, dele. Porque depois de feitas as honras, é que se conhece a inteireza da alma deste sexagenário que já nasceu em rugas e fraudões de doente terminal.

Vive refugiado na serra do Bico do Papagaio, em acarienses terras provinciais do Seridó, nosso herói reabilitado pela franqueza dos tais versos. De lá, frequentemente me envia pacotes de cartas e papéis coalhados de previsões, idéias persecutórias e versos de apocalípticas feições gráficas. Até agora, tenho guardado tais manifestos, inseguro sobre o caráter preparatório de nos outros para recebê-los no lar de nossas mentes confusas. Daqui por diante, chutarei o pau das barracas do consenso, e darei de publicá-los: a responsabilidade leitora é toda sua; portanto, esteja em dia com as possibilidades dos vastos pensamentos.

Enquanto lá, no Bico, Segismundo intitula-se exilado, embora a palavra não se empregue bem no contexto. É que não se concebe exílio na terra em que se nasceu e cresceu, a não ser que tal condição advenha menos da vivência do que da consciência - e este deve ser o caso de Segismundo, por sinal contraparente de Odicélio Gineceu. Fato é que o poeta caquético muitas vezes rima sem querer mesmo ao reclamar de um copo que lhe cai das mãos. E vive, quando quase feliz, na ilusão de que é um Neruda em ilha italiana, enquanto lá embaixo, nos paralelepípedos do Caicó ou nas cercanias dos Currais, a realidade não faz jus à sua presença. No máximo, às suas letras, que ele envia para seleto grupo do qual este escrevinhador faz parte, sem saber bem exatamente por quê.

De sua vida também pouco se sabe, além de que foi soldado contra a intentona nos casarões de 35, antes de ter entendimento para decifrar a natureza de tal conflito. Ou de que já ensinou taboadas até o ponto em que lhe partiu a paciência a pressa dos infantes alunos. Ou ainda de que, jovem, decepcionou-se com tudo assim de repente numa manhã de abril, quanto a beleza do céu contrariava as desgraças do mundo. Recolheu-se - e gostou. Oráculo atormentado às vezes, outras monge das secas que doem mas apascentam, de lá nos olha, triste mas compreensivo, conforme a distribuição das nuvens no céu. Seus poemas são sua graça, e ler de suas palavras é contemplar o mistério das chuvas invisíveis aos olhos de quem está preso ao chão.

Versos finais

Das multidões veio a gana esfarelada em taças de pó de desperdício
Do horizonte pululado pela massa veio um vapor de desumanidade
Da sina feita de caminhões em tropel veio a poeira nata
Do rugir da massa veio um tato cego de poço liso
Do grupo a vigir na esquina veio a ordem
Da vizinhança veio a força do cochicho
Daqui de casa vim eu mesmo, espanto
Do seu olhar veio o anúncio, seco
Do que ficou, foi este branco
De tudo, um nada e o
mó do por enquanto

Do ancião e poeta Segismundo Siqueira, habitante refugiado na serra do Bico do Papagaio, província acariense do Seridó.

terça-feira, 27 de abril de 2010

Caicó arcaico


Hoje, coisa de uma e tanto da tarde, trafegando na avenida Hélio Prates, em Taguatinga, Distrito Federal, lembrei-me de Caicó. É que, junto com o vento na janela do carro, veio um cheiro forte e saboroso de torrefação de café, a madeleine particular que guardo dos tempos em que, menino, ia a Caicó na carroceria das caminhonetes que meu pai fretava para levar frutas e verduras que vendia numa das feiras da cidade.

Junto com o cheiro de café torrado, inesperado e embriagador, veio a memória de todo um tempo desenhado pelos meus olhos de criança. É um Caicó arcaico como diz a música de Chico César. Um Caicó que aos meus olhos pequenos parecia muito maior, a metrópole possível para minhas pernas curtas que não alcançavam mais do que os limites rodoviários do velho Seridó. Mas que belo Caicó era aquele.

O Caicó da visão marginal da linha d'água do Itans na beira da estrada. O Caicó de carnavais barrocos, com caminhões tomados por foliões em blocos mil na avenida Coronel Martiniano. O Caicó da Rádio Rural, de uma distante e deslumbrante sessão de cinema que exibiu em tela gigantesca e em cores desenhos da Pantera Cor de Rosa. O Caicó das óticas onde experimentei meus primeiros óculos. O Caicó para onde minha mãe ia de tempos em tempos, provocando grandes sofrimentos na minha pequena pessoa, para fazer suas cirurgias. O Caicó cujas estradas, à noite, evocavam um pelotão rebelde que a qualquer momento poderia reaparecer ao luar misterioso. O Caicó de crimes espetaculares, de tiros premeditados que tiravam a vida de algum doutor à saída de um baile de carnaval. Caicó de papelarias com artigos variados que meus olhos cobiçavam, e onde se podia comprar, dinheiro havendo, mais de um livro da série Vagalume. Caicó do meu tio ex-combatente e suas noites diante da tevê que exibia em branco e preto velhos filmes de guerra.

Tudo isso tomou conta do ar já meio rarefeito de Taguatinga nesta época do ano quando o cheiro de café torrado entrou festejando pelas minhas narinas. Um belo presente proustiano que ganhei no meio de um compromisso do dia-a-dia, sem preço calculável, como diz o anúncio daquele cartão de crédito.

segunda-feira, 26 de abril de 2010

Para tropeçar na grande arte


Vocês me perdoem mas preciso dizer uma obviedade daquelas: é incrível a capacidade que o ser humano tem de fazer arte, aquela com A maiúsculo, acima de qualquer questionamento, que quando lhe atinge é como um direto no estômago que faz o sujeito urrar de espanto e deslumbramento inesperado. O motor desse comentário banal é uma cena de minissérie de tevê a que assisti estes dias. Estou vendo, com o atraso regulamentar, a caixa de DVDs com a minissérie "Hoje é dia de Maria", dirigida com o maneirismo de sempre por Luiz Fernando Carvalho. O diretor, como faz muito tevê, é bem conhecido em seu estilo pródigo de imaginação, barroquismos e transcendências - no que é muito corajoso, porque a tal linguagem de televisão constuma rejeitar tais rendilhados. No cinema, o homem fez o chão sacudir com sua recriação da "Lavoura Arcaica" - e tudo o mais que eu disser sobre ele, inclusive a invenção daquela Fernanda Montenegro de "Jacutinga" na novela "Renascer", será desnecessário.

O necessário agora é dizer de uma cena - apenas uma e "escassa" cena, como gostava de dizer Nelson Rodrigues - suficiente para colocar a minissérie num pedestal de onde deveríamos todos reverenciá-la, apesar do caráter meio sombrio que lhe percorre os episódios, como nota Rejane quando passa pela sala enquanto eu me encontro submerso nas metáforas líricas de Luiz Fernando. A cena mostra o esplendor de representação de um único entre os vastos grandes atores da minissérie: é Osmar Prado, no momento em que representa tanto o pai de Maria, um completo despossuído de matéria e alma, alimentado por migalhas de esperança ressecada, quanto a figura de sua própria morte. Osmar Prado é os dois: em um, é o resto de umidade do que sobrou do veio de vida que habitou uma pessoa agora à morte; em outro, é a própria morte, de cara limpa, palavras claras, expressão grave e empatia tão inevitável quanto assustadora, a anunciar ao outro que a hora chegou. É um assombro a cena - e não é nada de mais: apenas um ator dando vida não apenas a dois personagens, mas a uma realidade da qual se diz de boca cheia que dela ninguém escapa, como se fosse apenas isso. Osmar Prado, o ator exposto em nervos de anatomia humana, mostra que não é só isso - e o faz em uma mera cena de seriado de tevê. A morte ganha um outro estatuto nas mãos do profissional da arte.

Assistindo à cena, pensei na capacidade de suspensão que a arte - no caso, o desempenho de um ator, com o auxílio da luz de um iluminador e a condução de um diretor, movidos pelo texto de um autor - pode proporcionar. Por um momento que dura dez ou quinze minutos, o espectador se distancia dele mesmo, coloca-se aquém e além da realidade comezinha da vida, instala-se em algum lugar acima da mente e da alma de onde pode, extasiado, refletir sobre o que é, onde está e por que. Vendo Osmar Prado representar o morto e a morte, lembrei de uma antiga peça em monólogo feita por uma atriz portuguesa no tão amado TAM, o Teatro Alberto Maranhão, em Natal, em ano distante. Lá, no fundo da sala teatral envolvida toda em sombras, havia o vestígio de um barco que fazia da superfície do palco a linha d'água surreal de algum rio. E no corpo dessa canoa cenográfica, iluminada apenas por uma vela de afogado, estava a presença da atriz, bela e imensa em sua expressão a se projetar até a derradeira fila, com a força que a representação confere ao pobre ser humano. Titina estava com a gente e disse, anos depois, que aquela cena e aquela peça a fizeram se decidir por perseguir a profissão de ser atriz.

Pois é: anos depois, Titina e Quitéria, nas brumas urbanas de "Pobres de Marré" traziam de volta, sob o facho de postes cenográficos, aquela mesmíssima atmosfera. O lume desta magia que a arte consegue construir, de uma cena em que o mínimo movimento, no escuro do palco, retira alguma coisa muito grande do lugar, remove em milímetros incalculáveis as estruturas de nossa percepção sobre o que somos e pra que diabos estamos aqui, nesta cadeira numerada ou diante deste computador. Uma sensação que nos assalta quando diante de outras formas de arte, algumas vezes juntando várias delas no mesmo momento revelador. Como numa cena do filme "Era uma vez na América", do italiano Sergio Leone, em que uma menina com rosto de anjo sapeca dança em roupas de bailarina entre sacos e caixas de um armazém de secos e molhados, enquanto é observada por um menino que lhe cobiça o corpo e a alma.

Grande arte esta, que está por aí e, de vez em quando, para nosso deleite e nossa glória, surge para nos fazer tropeçar no banal da vida e lembrar que nem tudo são contas, metas e compromissos.

sexta-feira, 23 de abril de 2010

Tocar tudo (2)


Há momentos em que uma ilha de edição pode ser um negócio maçante como contar carneirinhos pra combater a insônia. Quando o editor de imagens começa a "ajustar" um pedacinho de áudio de uma reportagem em que estamos trabalhando, e a ilha digital começa a repetir um mesmo trecho, como se o equipamento estivesse com soluço, é uma tortura. Por isso, sempre que entro numa ilha levo comigo um livro, um jornal, uma revista - alguma distração para ocupar a mente enquanto o editor de imagens batuca nos teclados ou, como acontece agora, com a digitalização, pilota o mouse. Esta semana, trabalhando incansavelmente num video sobre a viúva de Israel Pinheiro, o cara que administrou no canteiro de obras a construção de Brasília (sim, com a comemoração dos 50 anos da cidade, preparou-se muito material sobre o assunto), passei de novo por isso.

Cansado de ler este best-seller sobre a história da humanidade em que estou empacado há semanas (o livro é bom, estou empacado por outros motivos), resolvi ligar o som do celular, usando os fones de ouvido como refúgio contra um daqueles indefectíveis "ajustes de áudio". O som vazou um pouquinho, era Caetano cantando "Trilhos Urbanos" naquele disquinho acústico do início dos anos 90 (aquele onde ele canta, divinamente, "Get Out of Town" e cuja capa ilustra a postagem) e Wagner, o editor de imagens, lascou a pergunta: - Gosta de MPB, Tião? Murmurei o meu "yes, man" habitual nessas horas, pensando, com os pitocos do meu celular cantante, o quanto esta pergunta, simples, curta e direta, revela sobre a maneira como a garotada consome música no mundo atual.

Na postagem anterior, falava da minha mania de ouvir os discos inteiros, a pretexto de comentar a vitória do grupo Pink Floyd sobre a EMI, que foi impedida pela justiça de fatiar o célebre LP "The Dark Side of the Moon". A pergunta de Wagner tem tudo a ver com isso. É a indagação típica de quem se acostumou a classificar em gêneros estanques - mas comercialmente eficientes, segundo supõem os gerentes de marketing - aquela coisa maior, anterior ao produto disco ou à faixa de MP3, que é a música. A música boa e ponto final. Ao esfacelar o comércio musical em faixas estanques, a indústria da área (ou o que restou dela, o que só mostra que a danada continua errando), matou não só o conceito consagrado de álbum, mas também reuniu os cadáveres em um negócio semimorto chamado "gênero". Já reparou na quantidade de discos "ao vivo" que estão à venda na rede de lojas Americanas?

Por causa disso, parece que hoje em dia ninguém mais gosta de Caetano Veloso - gosta de MPB. Ninguém mais ouve Michael Jackson - escuta flash back. Ninguém mais curte a Legião Urbana - consome "rock nacional". E por aí vai, numa norma que ignora o lado rock de Caetano, ou o lado, vá-lá, MPB de Cássia Eller, ou a contribuição de Michael Jackson para a formatação do pop atual (aqui, sim, citado, visto e ouvido como um gênero pelo que contém de particular em relação ao jazz, por exemplo). Enfim, a classificação genérica e didática até que existe e se justifica, mas o nível de categoria redutor em que ela foi convertida pelo mercado do disco, o pobre e burro mercado do disco atual, é atentatório à dignidade da música como forma mínima de arte.

Quer ver uma coisa? Naquela própria enquete feita pelo G1 com artistas, em que se pede que eles indiquem álbuns que devem ser ouvidos sempre na íntegra, há um sinal dessa compartimentação do mercado musical. Repare que a "roqueira" Pitty sugere somente discos dessa vertente, enquanto Bruno Medina, um Hermano mais próximo à música brasileira clássica, sugere somente álbuns "de MPB". Como eu não sou ninguém e, sendo assim, não corro o menor risco de ser classificado e embutido nos escaninhos de algum gênero musical, vou preparar minha própria lista de discos que devem ser ouvidos na íntegra, sem discriminar estilos. Só pra protestar, mesmo que ninguém note. De maneira que vem aí a maior mistureba. Aguardem a lista na próxima postagem.

Tocar tudo


Roberto Carlos não veste marrom, o personagem de Jack Nicholson no filme "Melhor é Impossível" não pisa entre as pedras da calçada e o milionário e cineasta Howard Hughes só abria porta de banheiro usando um lenço para não se contaminar com as bactérias, como relembra Martin Scorsese em "O Aviador". Estes são casos extremos, mas de uma maneira ou de outra todos temos nossos pequenos "tocs" secretos - os tão falados "transtornos obsessivo-compulsivos" que, levados às últimas consequências, tornam a vida um inferno. Eu sou humano e tenho vários, mas o que me interessa aqui é apenas um deles: minha mania de ouvir discos da primeira à última faixa. Como é bom - e como é difícil abrir mão dessa jornada sonora completa.

Como o meu caso não é clínico - ainda bem -, eu naturalmente interrompo a audição do meu Zé Ramalho preferido quando chega a hora de um compromisso, ou quando as crianças me chamam, ou quando Rejane convoca. Sem maiores problemas, afinal eu não sou Roberto Carlos nem com toc nem sem. Mas que o bom mesmo é ouvir o disco inteiro, faixa após faixa, sem nem sequer uma pausinha pro xixi, ah, disso não há dúvidas. Por isso mesmo, e sem querer soar ultrapassado, minha cisma com esses novos tempos em que a música virou um peixe que se come em postas, à venda na internet, ou disponível de graça - mas fragmentada como um cadáver de Chico Picadinho - no E-mule, ou ainda compactada (depois de desfiada em faixas independentes) no CD de MP3.

Reafirmo: não sou Roberto Carlos com toc nem sem, por isso tenho sim CDs de MP3 daqueles que misturam as já bagunçadas coletêneas numa única mídia infinita, também baixo minhas músicas (já baixei mais, a amor passou e o computador também já foi melhor), mas o fato concreto é que tudo isso é uma adaptação difícil. Porque do que continuo gostando mesmo, é do velho (!) CD comercial, normal, da gravadora, que se compra na loja, tanto quanto se fazia com o velho long play do tempo da Modinha. Gosto da coerência do projeto, da harmonia do conjunto, da intercomunicação interna das faixas, de ouvir em música organizada a idéia que o cantor e o compositor depositaram naquilo tudo. Em suma, gosto de música em formato superado, embora admita os novos - mas é como se os novos fossem imperfeitos perto da experiência acumulada dos velhos. E são mesmo, ora!

Essa conversa toda está aqui porque acabo de ver no G1, aquele site de notícias com que a Globo tenta ocupar mais um espaço midiático nativo, uma notícia animadora e uma idéia divertida construída sobre ela. Já-já coloco o link pra você conferir in loco, caso também tenha essa minha mania de ouvir discos inteiros e não servidos em pedacinhos como bolo de aniversário em festa da repartição. A notícia é de que o grupo Pink Floyd foi à justiça contra a venda, pela multinacional da música EMI, de faixas separadas do célebre album "The Dark Side of the Moon". Todo mundo sabe que a venda esfacelada de faixas deste - ou de qualquer outro disco do Pink Floyd - é uma tremenda interferência na concepção da própria música do grupo. Só pra efeito de compração, imagine uma pessoa que passa horas ouvindo faixas soltas de vários discos do Pink Floyd mesmo: já é um negócio indigesto como comer uma pizza grande em que cada um dos oito pedaços é de um sabor diferente. Agora, imagine misturar faixas avulsas do Pink Floyd com coisas de outros músicos que não têm muita afinidade com o som da banda.

Até vale, como uma coletânea eventual - ou num momento relaxado em que a música é apenas parte do que se passa, como numa festa, por exemplo. Mas, no geral, é inegável que a venda de discos em pedaços vai afastar o ouvinte da essência da música daquela banda específica. Não chega nem ao nível do "compacto" de antigamente que, ao menos, podia oferecer uma amostra do que era o LP completo, já que trazia embutido um mínimo de conceito - a não ser que contivesse música imprestável mesmo, mas o que não presta independe de mídia e será ruim em qualquer formado, esse já é outro papo. Voltando ao caso do PF, a notícia no G1 é de que a banda venceu a causa. Felizmente. E aí, como nada se perde no reino da informação de entretenimento do mundo da internet, o G1 aproveita para pedir a um grupo de artistas uma lista com álbuns que eles consideram que devam ser ouvidos assim, na íntegra, faixa após faixa, sem essa de venda avulsa como pizza fatiada.

Leia aqui a notícia e veja as listas. Na próxima postagem, mais um pouquinho sobre o assunto. Aguardem.

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