segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Os alertas perdidos de "Olga"


Há leituras que são reveladoras, que abrem um vasto leque de interesses inesperados. Há leituras que se revelam emocionantes, levando o leitor a colocar-se, tanto quanto isso seja possível, no lugar de outras pessoas que vivem situações diversas, sejam reais ou ficcionais. Há também leituras que organizam, como num processo pedagógico, a visão algo tumultuada e muitas vezes dispersas sobre temas que, ao fim e ao cabo, compõem um conhecimento só. E também há leituras que são perturbadoras, daquele tipo que obriga o leitor a parar, de página em página - às vezes, as mais marcantes, de parágrafo em parágrafo - para respirar fundo e assimilar aquilo, antes de prosseguir. "Olga", aquela atordoante biografia da primeira mulher de Luiz Carlos Prestes, escrita com maestria por Fernando Morais, é um livro assim. Revelador, emocionante, informativo e organizado e, principalmente, perburbador.

Não foi a primeira vez que cruzei com este livro. Li "Olga" na primeira onda de leituras que o livro teve, tão logo foi lançado, ali por volta de 1985. Por causa dele, li uma série de outros livros logo em seguida, leituras ansiosas, quase dinâmicas, em busca de mais e mais informações sobre aquela figura impressionante, sobre Prestes, sobre Vargas, sobre o Estado Novo, sobre os reflexos do nazismo no Brasil, sobre a redemocratização de 45. Eu era então um garoto de 19 ou 20 anos - estou na dúvida se essas leituras se deram em 1985 ou 1986 - que aproveitava as férias da UFRN e a temporada de volta ao interior do RN para ler. Se o "Sopão" ou a "Hamaca" existisse naqueles tempos longínquos, ele certamente tratia uma postagem impressionada com o conteúdo não só de "Olga", mas também das "Memórias do Cárcere" de Graciliano, do "Cavaleiro da Esperança" de Jorge Amado, e até daquela trilogia que o próprio autor, o mesmo Jorge, rejeitou mais tarde, "Os subterrâneos da liberdade". Eu li tudo, sim, senhor - e com avidez e prazer. Parelhas, minha cidade, era o cenário das leituras, em casa, à noite, à luz de uma luminária que trabalhava madrugada a dentro com o silêncio geral a me beneficiar; e, de dia, nos bancos da praça em frente ao Grupo Escolar Barão do Rio Branco, minha ex-escola primária.

"Olga" tornou-se, assim, um livro importante e definidor de certa formação política que então começava a cimentar. Mas também desconfio de que foi por causa dele que não me tornei um militante de esquerda, digamos, "tradicional". Nunca me filiei e tampouco me senti bem na única reunião partidária de que participei na vida. É que o livro, aquele relato de tamanho sonho e gigantesco custo pessoal, ao mesmo tempo em que tornou a militância política um assunto de interesse para o resto da vida, também teve o poder de me manter distante de uma atividade tão recoberta de camadas e camadas de condicionantes, limites e impossibilidades. Em outras palavras: eu fiquei deslumbrado com o mundo da participação política, mas também fiquei cabreiro. O resultado disso é o que sou hoje, um cidadão que tenta, na medida das possibilidades de sua intervenção, fazer o que pode para melhorar a realidade em torno. No meu caso, valer-me da minha profissão para difundir informação para o exercício da cidadania. Ou pelo menos não fingir que tal realidade não exista, seja ela insuportável, passível de melhoria ou, de fato, como acho que acontece agora, ligeiramente melhorada.

Mas "Olga", para além da política e da revolução - ah, a revolução! - contém um outro elemento, não menor devastador e que, de tão potente, acaba sendo o fator dominante para quem lê ou, como fiz agora, relê este livro. É a longa noite de sofrimentos que atinge Olga Benário, numa sucessão de insucessos, privações e provações que a gente, mesmo sabendo de antemão já que a história hoje é bem conhecida, ainda teima em não aceitar. Neste ponto, "Olga" é um livro impressionante à sua maneira: em muito momentos, eu (re)lia tudo com uma sensação de incredulidade que não poderia mais ter, e no entanto tive, e da maneira mais forte. Assim: você vai lendo, acompanhando o calvário de Olga rumo à expulsão do Brasil para cair nos braços dos nazistas e não acredita. Não sei bem como explicar, mas a impressão é de que, ao ler, você meio que se nega a acreditar que nada vai deter aquela sandice. Há um momento do livro que mostra Graciliano Ramos, preso na mesma detenção de Olga, enroscando-se em torno do próprio corpo no fundo de um catre da prisão, atordoado com aquele pesadelo, dizendo de si para si mesmo: - Como é possível que o Brasil vá entregar essa mulher a Hitler...

Que se tenha esse freio autopreservativo de desconfiança lendo o livro pela primeira vez, é compreensível. Mas numa releitura, impressionou-me que este fenômeno tenha surgido outra vez. Pois ele veio, tão vivo quanto as sensações que eu tinha nas madrugadas parelhenses em que, com meus pais dormindo no quarto ao lado, iluminava a sala com aquela leitura deslumbrante e desesperada. Mas outras repetições ainda me esperavam até o livro acabar. Reli "olga" no último fim de semana de janeiro, terminando a leitura numa manhã-tarde de segunda, à sombra da árvore que temos no quintal de casa. É um lugar calmo, arejado e sossegado, onde posso ler sem qualquer interferência, a não ser o canto dos passarinhos em rota para o Parque Nacional de Brasília. Ainda bem, porque, sem que eu esperasse (ou me lembrasse), a narrativa de Fernando Morais não termina, como se espera naturalmente, com a morte de Olga na câmara de gás. Há um epílogo que mostra a reabilitação (passageira) de Prestes e sua inesperada aliança com Vargas. Depois de entreter-se com essas novas escaramuças da prática política, acompanhando Prestes em comícios de multidões, volta a presença de Olga, embora ela já esteja morta há meses.

É quando Prestes recebe a notícia da confirmação da morte da mulher e, por fim, a última carta que ela lhe escrevera minutos antes de embarcar no trem que a levaria à câmara de gás. E, essa sim, meus amigos, é uma leitura devastadora, com toda a carga emotiva que esse reles adjetivo possa ter - e ele, definitivamente, não tem. Não sei como dizer isso de outra maneira, mas mal começei a ler a carta e explodi numa imprevista crise de choro, daquelas de sacudir o corpo em soluços, de banhar o rosto de lágrimas, de babar um pouco com a certeza de não haver ninguém por perto. E ainda bem que não havia mesmo ninguém por perto, pra eu não precisar me explicar. Só divido esse fato aqui com vocês por um desejo de revalorização desta história, nestes tempos em que vivemos agora de tamanho descaso para com o passado recente do país. Não sei vocês, mas de vez em quanto, com frequência cada vez maior, tenho ouvido por aí - na rua, no trabalho, no parque - gente elogiando a ditadura brasileira mais recente. Isso é assustador, como assustadoras são muitas das situações contadas em "Olga".

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Volta às aulas

Esta semana, recomeçaram as aulas da aluna Cecília. E do aluno Bernardo também. Mas, no caso da aluna Cecília, a volta às aulas teve mais novidades. Em primeiro lugar, a sala dela agora fica no primeiro andar da escola. Sim, senhor, Cecília foi promovida, não só ao Jardim II da da Escola Sagrada Família - Menino Deus, mas também arquitetonicamente falando. Agora, ela estuda juntinho das turmas das "meninas grandes" (que é como apelidei as garotas maiores da escola, pra estimular nossa diligente aluna lá de casa a apreciar ainda mais o meio escolar).

Primeiro dia de aulas, aquela muvuca na escola toda. A Sagrada Família - Menino Deus é uma escola pequena, adminstrada por "freiras pobres" como eu digo, para evitar que se pense logo em coisa magalômana de muros e capelas suntuosas. Carradas de pais ansiosos deixando os filhos, aquele papo pra checar a professora, aquela despedida morrendo de medo que o garoto ou a garota cisme de querer voltar para casa. Aquele clima todo que quem tem filho pequeno ainda nos primeiros anos de escola deve conhecer bem.

Cecília, além de promovida ao primeiro andar, além de agora estudar parede e meia com as turmas das "meninas grandes", ainda ganhou outra auspiciosa novidade: a nova sala tem carteiras. Sim, senhor, car-tei-ras (será a divisão silábica está certa ou terei de voltar aos bancos escolares?). Isso é uma quebra de paradigma e tanto, um ponto de virada daqueles na vida escolar de nossa pequena aluna que ainda nem fez seus 5 anos. Uma evolução na escala da vida escolar pela qual você que me lê agora certamente também já passou, embora tenha esquecido do momento e da imensa importância dele. Porque uma coisa são aquelas mesinhas de maternal onde os quase bebês tatibitaram com os colegas e as professoras enquanto amassam massinhas cognitivas de várias cores. Outra, bem diferente, é ter sua própria carteira, enfileirada à frente, atrás ou entre as outras, naquele formato clássico de sala de aula que mira no professor, o deus da sabedoria absoluta, à sua frente. E ainda tem, para coroar tudo, o quadro. Ah, o quadro! O quadro, meus amigos, é como a representação escolar da vida. Toda atenção para o que vai escrito, rabiscado ou desenhado nele.

E Cecília, toda animada com as novidades, já reparou nos impactos dessas mudanças. Disse que gostou muito das "carteiras" (e pela maneira como pronuncia a palavra, gostou também da experiência de conhecer e colocar em prática uma palavra nova). O quadro veio em seguida, quando perguntamos como foi a primeira e a segunda aula, naquele interrogatório imbecil que todo pai e mãe insiste em fazer aos seus pequenos que acabaram de voltar às aulas. Pois bem, Cecília, depois de muita insistência, contou que a atividade do dia era "tirar do quadro" tal ou qual coisa - um desenho, pelo que entendi. Cecília, minha gente, com cinco anos incompletos, já "tira do quadro" uns desenhos. Não sei se fiquei mais orgulhoso ou mais bestificado diante da informação.

Contou ainda que, no primeiro dia, rolou um questionário de apresentação na sala - claro que esse "rolou" e esse "questionário de apresentação" aí são palavras minhas, não dela. A professora nova pediu que cada aluno dissesse o nome e coisas de que gosta e de que não gosta. Cecília relatou, depois de eu muito insistir em querer saber o que ela respondeu, que disse gostar de "festa" e "chocolate" - agora sim, a transcrição entre aspas é original. Quando às coisas de que não gosta, citou "guerra" e "bater nos outros". Achei bonitinho, mas desconfio de que "guerra", uma palavra que, ao que me consta, ainda não faz parte do vocabulário de Cecília, ela pode ter copiado de outros colegas. Mas já é alguma coisa, não é?

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Andar com Caetano


Na postagem anterior, falava-se sobre a pena imposta ao pobre do Chico Buarque de Holanda, que anda quilômetros e quilômetros cabisbaixo e cabreiro para as gravações da série de DVDs que reconta sua história no panorama musical brasileiro. Dizia lá que os produtores da série só deram um folguinha para as andanças de Chico, nos momento em que ele, no lugar de andar, está falando feito um oráculo compulsivo. Ainda bem que é bom de papo e que o material de arquivo usado é vasto e não mata o velho de tanto falar e caminhar.

Pois qual não foi minha surpresa ao ver que fizeram muito pior com Caetano Veloso. Nâo sei se foi inveja - afinal, não dá pra esquecer os desentendimentos históricos, verdadeiros ou falsos, entre os dois papas da emepebê - mas o fato é que em "Coração Vagabundo", aquele filme que fizeram recentemente com Caetano e que acaba de sair também em DVD, algo muito similar ao que acontece na série de Chico chama a atenção. Se o autor de "Vai Passar" está ou andando quilômetros ou falando pelos cotovelos, o criador de "Alegria Alegria" faz as duas coisas ao mesmo tempo neste "Coração Vagabundo". Sim, senhor, Chico ao menos fazia uma coisa de cada vez; já Caetano é obrigado a fazer as duas coisas ao mesmo tempo: dá entrevista andando, o tempo todo, às vezes atravessando ruas movimentadas, lutando para se equilibrar entre a calçada e aquela declaração bombástica que sempre se espera dele. E o baiano só falta mesmo perder o fôlego, afinal já passou dos cinquenta faz um tempinho.

A lógico do comentário aqui é a mesma do anterior: essa abordagem meio fútil dos dois produtos, tanto a série de Chico quanto o filme de Caetano lançado em DVD, quer dizer apenas que é saudável desmistificar essas figuras que, assim tratadas, não tema, ficam ainda mais interessantes. Só que no caso de Caetano, a direção do filme/DVD investiu claramente numa tentativa de fazer o que chamam de "cinema direto" - que é aquela técnica de documentário que procura grudar uma câmera no seu personagem o tempo todo, sem qualquer outro tipo de interferência, como a buscar o registro mais distanciado possível (porque próximo como uma testemunha muda) da figura retratada.

Agora, meu amigo, você pense no que é fazer "cinema direto" tendo como personagem uma figura como Caetano Veloso. Se fosse Chico, toda aquela propalada timidez facilitaria as coisas. Mas, Caetano... Pense numa missão difícil: porque, por temperamento, o baiano não consegue se conter e acaba encenando qualquer coisa para aquela câmera silenciosa. E o que poderia ser "o mais revelador retrato de Caetano Veloso", como promete um especialista na capa do DVD, não passa de mais um produto da linha Caetano Veloso (um bom produto, como sempre, mas nada que se inscreva na história da cinematografia ou da música brasileira).

Até porque, cinema direto ou não, o que acaba chamando mais a atenção é a respiração ofegante do pobre do Caetano enquanto vira esquinas entre Tóquio e não sei onde. Sim, porque este tipo de abordagem já está virando moda. Parece até início de novela da Globo, com as locações mais atraentes e deslocadas quanto seja possível. É isso: a idéia inicial da série de Chico - de situar os depoimentos em locais significativos para o tema de cada um dos DVDs - foi copiada ao pé da letra e sem o menor pudor, muito menos aquela justificativa mais evidente que se nota no caso do autor de "A Rita". E no final das contas, o uso frouxo do tal "cinema direto" fica patente naquela sequência filmada num templo budista, que resultou em algo tão zen que dá tédio. Pensando bem, o "Coração Vagabundo" de Caetano, essa canção que, como bem mostra o DVD, fala a pessoas de várias partes do mundo, poderia ter tido um tratamento melhor.

Postagem em destaque

O último cajueiro de Alex Nascimento

Começar o ano lendo um Alex Nascimento, justamente chamado "Um beijo e tchau". Isso é bom; isso é ruim? Isso é o que é - e tcha...