segunda-feira, 24 de maio de 2010

Pra ouvir do início ao fim




Há um milhão de postagens atrás, anunciou-se o plano de listar aqui os dez discos que não deveriam jamais, por decreto algum do mercado das artes, ter suas faixas vendidas separadamente. O que motivou esse plano foi a notícia de que a banda Pink Floyd estava acionando judicialmente sua gravadora por estar vendendo, avulsas, faixas do célebre álbum "The dark side of the moon" que, como todo mundo que não vive em Marte sabe, compõe uma obra conceitual única, do primeiro ao último som que se ouve em vinil ou CD. Clique aqui para ler ou reler a postagem original sobre o assunto. E agora, parte da lista prometida, com os primeiros cinco discos, todos em português que é pra não precisar nem de legenda:



1.A PELEJA DO DIABO COM O DONO DO CÉU (ZÉ RAMALHO): da faixa-título inicial ao "Frevo Mulher" recriado (depois de estourar na voz de Amelinha) que fecha o disco, temos uma obra fechada que mistura as figuras do sertão com a mitologia plenetária; repentes, galopes e outras métricas musicais nordestinas; tudo numa poética à parte que só o profeta profano Ramalho consegue construir. Tudo bem: é até interessante embaralhar as faixas todas do disco, mas também soa como um crime picotar todo esse material num playlist caótico. (a propósito: tem mais Zé Ramalho na amostra de vídeos do youtube, abaixo, à esquerda)


2.ANGELA RO RO -
É um escândalo que a cantora carioca seja lembrada pelas gerações atuais apenas pelos escândalos que protagonizou na, vá-lá, juventude. Quem ficar nisso vai deixar de enveredar pela bela obra blues-pop-mpb desse vulcão emocional que destila sensibilidade pura cada vez que tecla um piano e solta a voz grave como um trovão bêbado. "Amor meu grande amor" é uma materlada até hoje, mas nem por isso deveria ser vendida separada de suas irmãs igualmente tinhosas, como "Gota de sangue".

3.SAUDADES DO BRASIL (ELIS REGINA) - É o registro do show homônimo e, como tal, só faz realmente sentido, ou pelo menos um sentido maior, de transcendência, se ouvido de ponta a ponta, de um disco a outro. As vinhetas que, mais do que separar, intercalam as músicas, são uma prova disso. E é tanta beleza em forma de música que só cabe em duas bolachas ou dois CDs. Tem desde o tecido musical semi-hemorrágico de "Moda de sangue" até a performance marota de "Alô, alô, marciano".

4.BEBADOSAMBA (PAULINHO DA VIOLA) - Paulinho, todo mundo sabe, é bissexto em discos. O intervalo entre um e outro dura anos. Quando este Bebadosamba chegou, a espera vinha de longe e a chegada foi bem comemorada. Era mais uma leva de belos sambas, como "Timoneiro' e "Ame". Eu fico me perguntando como é que alguém consegue ouvir uma faixa desse disco sem continuar quieto no seu canto para seguir escutando as demais. Se é melhor comprar logo tudo na loja virtual, porque não adquirir então o CD inteiro? Tem barato que sai caro, viu?

5.BABY CONSUELO AO VIVO EM MONTREUX - Tá bem: citar disco que reproduz shows ao vivo para defender a venda integral das músicas de um CD é moleza. Mas você já ouviu esse aí? Tem a eletricidade de "Toda donzela tem um pai que é uma fera" e tem a mansidão disfarçada de "Eu e a brisa", tudo com aquela sibilante e criativa sonoridade típica da música brasileira mais pop do iníciozinho dos anos 80. Não dá pra ficar só numa faixa e apertar os pitocos do tocador de mp3 sem sentir uma forma de prejuízo na cachola. É no mínimo uma estupidez e no limite uma burrice. Alguém aí tá a fim de parecer pouco inteligente? Então tá bem, que se habilite.



Breve mais 5 íntegras obrigatórias pra vocês.

quarta-feira, 5 de maio de 2010

Segismundo e a Grécia


Chegou carta de Segismundo Siqueira, fumaçando de quente com as últimas notícias do Urtigão acariense da serra do Bico do Papagaio. Vamos à lettera:

Cabra Tião, salve sempre!

Esta noite, vislumbrando o noticiário do mundo na bola de cristal marca sansung que meus netos me deram no Dia do Índio, apascentei a alma quanto a uma das culpas que carrego. Explico, tão detalhosamente quanto possa eu ou quanto suporte sua pessoa. Foi em 1983, quando afinei a casca do meu couro nas baionetas da polícia. Ano de seca brava, esturricação genérica, bicho morrendo, esqueleto de gado nas beiradas do caminho. Coisa triste, tempos outros. Foi-se, como quisera. Mas para domesticar a fome a ponto de a criatura se manter em pé foi preciso medida radical de desesperado: o saque, que as bolas de cristal daqueles tempos, chuviscadas como não se vê mais à sombra das arupembas modernas, também noticiaram.

No saque, fui um deles, prezado. Estava lá, correndo dos homens com o peso de uma saca de feijão bem afanado nas costas. Não sei se só por impaciência do estômago ou também por revoltas do espírito. Mas estava lá e fui xingado, em impropérios municipais xinfrins e também em letras elegantes de jornais e revistas das capitais. Flagelado era o mínimo que se dizia de nós, com aquela mistura de desprezo e preconceito fermentado. Agora, pois, e volto ao presente da atualidade, vejo na bola vitrificada da sansung que coisa parecida - ou idêntica, que as variações das manifestações humanas de desespero se igualam na intensidade das revoltas - está a se passar em terras do país da Grécia, naquele mundão consagrado que nasceu antes da gente e se chama Europa. E, ao que vejo na sansung colorida como o quê, o mundo todo está até que bem compreensivo, achando motivos para amparar o furor da greguaiada de molotov debaixo do braço. Apois, sim - veja mesmo. Como dizia minha ancestral Mariquinha Tapioca, que Deus a tenha, "sostô você". Se fosse nós, aqui das bandas do Bico, os trabucos já estavam cantando suas ave-marias.

Atraído por um anúncio na mesma sansung cheia da novidade, assaltou-me uma vontade danada de descer a serra e assistir ao cinema. Sim, senhor, o velho cinema onde não piso desde a estréia de Vicente Celestino no tornei-me um ébrio de chorosa lembrança. Que filme melhor que aquele duvido que de então se tenha sido feito. Pois a sansung diz que tem, e que se chama "Homem de Ferro 2" e que todo mundo, até eu aqui no meu muquiço, tenho que me manifestar para assistir - e que caso contrário posso me anular do mundo como pessoa inexistente, como se já não fosse essa minha profissão de vida diária. Mesmo assim, mexeu com os brios. Quis ir ver, em 3D como obriga a propaganda. E só não fui porque nem Caicó nem Currais, muito menos Acari, que é pertinho e não precisa de gastar gasolina para chegar, não tem, descobri estes dias, cinema 3D para me apresentar à fita. Fiquei fulo, pois queria saber o que danado tem esse Homem de Ferro em matéria de mau humor, cinismo e cansaço do mundo que eu, socado aqui nos altos dessa serra de ninguém, não tenha.

E o mundo aí, pagando os fundos dos fundos para assistir ao que a vida verdadeira exibe de graça. É muita moda, prezado. Ou por outra: eu, que sempre me achei um xique-xique em forma de gente sem ligação alguma com o mundo, estou muito do por-fora. Porque o Homem de Ferro 2, com sua convocação obrigatória para as massas se derrearem diante do rancor cultivado, diz sobretudo que eu, e ninguém mais que eu, estou muito é na moda. Só falta agora escrever um livro e desfilar em autógrafos nas livrarias.

Pra encerrar, contar de visita que recebi estes dias. Ciro Gomes, meu sobrinho de estimação, veio aqui. Pedir a bênção, injuriado. Acalmei o menino com um copo de água de riacho. É por isso que ele se sumiu - não é nada de ter ido pro estrangeiro não, conversa pra boi dormir.

Até a próxima.

Do amigo sempre pronto para uma patada,

Segismundo.

segunda-feira, 3 de maio de 2010

Paralamas na capital


Não é por velhice antecipada, artrite precoce ou desistência completa dessa juventude que já vai dobrando a esquina. É mais devido a obstáculo bem concretos, como filhos pequenos, trânsito difícil e necessidade mínima de sossego. Por tudo isso, eu jamais imaginava que, a esta altura da vida, ainda iria sair de casa para assistir e vibrar com um show dos Paralamas do Sucesso em campo aberto no panorama da capital. Uma chance não calculada de reencontrar, da platéia para o palco, aquele trio de garotos com os quais minha geração cresceu, tirou diploma, fez uma vidinha profissional pulando de um emprego assim para outro melhor, teve filhos e coisa e tal. Ao mesmo tempo em que a gente ia se esquecendo deles, no processo natural das coisas que vão e vem.

Pois o tempo passou e parece que fez um intervalo, merecido intervalo naquele feriado dos 50 anos de Brasília, o 21 de abril passado. Quando vi, estava lá, no gramadão da Esplanada dos Ministérios, rodeado de uma gente animada que, mais novos ou mais velhos, pareciam todos ter a minha idade. Rejuvenescidos todos, só por arrastar da memória, como quem puxa uma velha rede de pescaria cheia de buracos e pepitas, as letras de canções em que o tempo tratou de botar moldura e pendurar na parede. “Mesmo querendo, eu não vou me enganar, eu conheço seus passos.”

Assistir, aos 44 minutos do segundo tempo, que corresponde à minha idade atual, a um show do Paralamas, distinguindo ao longe, como pontinhos no palco, Bi, Barone e Herbert na sua cadeira inquieta, foi como me teletransportar, sem os danos da física e os efeitos colaterais da saudade, para um distante estádio Juvenal Lamartine, na Hermes da Fonseca, em Natal, no não menos distante ano de 1988. Show do Paralamas, sobre o repertório novinho do LP Big Bang. Catarse musical coletiva para expulsar pelo suor e pelo riso as raivas daquele tempo Sarney. Mas os inocentes escândalos de antanho ao menos conviviam na boa com amizades que pareciam fadadas a durar para sempre.

* Na barra de amostra de videos, assista a velhos clips do Paralamas.

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