quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Muitos filmes em um só



Quando tudo parece que já foi filmado de trás pra frente e pelo avesso, o hibridismo audio-visual é a lei. A lei que se insinua por trás dos fotogramas digitais deste "Millennium - Os Homens que Nâo Amavam as Mulheres", a série para cinema lançada com o propósito de fisgar o público bisavô de Herry Porter. Hibridismo é isso: referências jorrando do vulcão de imagens em atividade na tela. Hibridismo é você se livrar das complicações do enredo e se deixar levar pelo clima, o que "Millennium" tem de sobra. É daí que vem aquela sensação de estar vendo um remake para tela grande daquele grande sucesso para tela pequena do final dos anos 80, o "Twin Peaks" de... David Lynch. Você tira o Kyle MacLachlan bom moço do protagonismo e intala no centro da dramaturgia uma punk pau-pra-toda-obra e tchan: a grade sacada é refazer, recombinar, hibridizar. Não é que seja ruim - oh, é ótimo até o último segundo - mas que fica difícil não assistir sem tentar espanar mentalmente as citações de cada personagem, situação, cena. Na verdade, esse hibridismo dá até um gostinho a mais.

Quer ver? Tente, caso você tenha por volta dos 40 e costume ir ao cinema desde pelo menos os 10, assistir ao filme de David Fincher sem cair na tentação de se perguntar: e se o outro David, aquele mesmo, o Lynch, que também fez coisas tão climáticas quanto "Veludo Azul" e "Cidade dos Sonhos" pegasse um filme desses pra fazer? O que danado ia sair? Hibridismo hipotético. Na vastidão mercadológica do livro-entretenimento que diverte mesmo - não é ironia, isso aqui - tente não fazer um paralelo entre a hacker-punk do filme com o assassino meio Blade Hunner atrasado e teleguiado do "Código Da Vinci". Experimente, mais que tudo, deixar de ver no Daniel Craig as sombras glamurosas do neo James Bond, o ex-punhos de renda e atual punhos de MMA propriamente ditos. Tudo bem que o ator - aquele mesmo que já se mostrava seguro como o filho mau do mafioso mais mau ainda em "Estrada para Perdição" - não apresenta dificulades em distinguir o jornalista do ex-agente secreto - aliás, a cena em que o brutamontes se degela de medo deve ter sido a que ele mais gostou de fazer, pela possibilidade de diferença que oferece e que os atores tanto apreciam. Mas as caras cinematográficas super-expostas são como os protagonistas da Globo: recorrentes e saturadas demais para você se ver completamente livre da encarnação anterior da figura. Hibridismo facial é isso aí.

Há mais hibridismo ao longo de "Millennium" - é um após o outro: quando você acha que a face demoníaca de Stellan Skarsgard, o nórdico com cara de decente mas sem qualquer caráter, não serve mais para nenhum personagem assumidamente nefasto, eis que ele surge de novo. Com o mesmo olhar de "o médico e o monstro" que você já viu em "O Gênio Indomável" e vários e vários e vários outros momentos na penumbra do cinema. Hibridismo de sina dramática. E o mais incrível: funciona, agora numa performance que parece definir como faria um caneta tinteiro o que antes, diante deste filme, parecia só um esboço. Vai ser mau assim num filme de Zé do Caixão! Derradeiro hibridismo no post e no filme: Charles Chaplin. Porque chapliniana é a cena final, em que a pós-punk que quando anda na rua parece mais um carrilhão de igreja medieval - os blin-blins de todos aqueles piercerings são o guizo que ela deveria evitar enquanto se faz de invisível à frente de um notebook - assume seu lado Carlitos. Nada que Renato Aragão não tenha feito à exaustão - e sempre agradando, claro: Rooney Mara, depois de salvar a investigação e a pele de seu herói Craig - e de lhe proporcionar outros benefícios mais - vê-se preterida pela Cinderela loura da redação (Millennium é o nome da revista em que trabalha o jornalista Bond, digo Clark, ou melhor, Craig). Só faltou David Fincher encerrar o filme com a garota androginada sumindo na estrada, hidridizando de uma vez por todas o primeiro episódio de uma série  que diverte e faz lembrar de outros hits do cinema pop. Bacaninha e climatizado, no outro sentido da palavra.

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