quinta-feira, 21 de junho de 2012

Ouvindo a voz de Deus




Imagino que, diante de Deus em pessoa, nem nós, pecadores vulgares, nem ele, criador supremo, precisem usar a palavra falada para se comunicar. Esse tipo de encontro deve ser uma coisa tão sublime que dispensa formas de comunicação mais ligadas às limitações terrenas. Mas, insisto, caso esse Deus improvável mas por isso mesmo tão presente na vida de todos e cada um precisasse se comunicar com um resto humano como eu e você, então, meu amigo, eu não teria dúvida nenhuma: Deus teria a voz de B.B. King. Aquele timbre negro, aquele farfalhar de aparelho vocal gasto, aquela cor auditiva entre o conforto do marrom e a inquietação do preto, aquele tom de avô mítico, e ao mesmo tempo, pop.


Se “Eric Clapton é Deus”, como se escrevia nos muros de Londres nos anos 60, então B.B. King é a voz com que Deus se permite ser ouvido na terra, embora sem se apresentar assim que é para não vulgarizar sua valorosa presença. Quem se der ao trabalho de ouvir o homem, escutará a pronúncia sofrida deste Deus. Não falo da guitarra célebre, tampouco preciso me deter no colchão sonoro onde a voz se deitar para orar, descansar ou amar, que é o velho blues daquele sul ao norte tão rancorosamente racista. A voz se basta, o esganiçar plangente de corda viva de guitarra humana, vertendo sangue e beleza, dor e êxtase cada vez que canta.


Tudo isso me ocorreu enquanto ouvia, duas vezes seguida, headphones entupidos nas profundezas dos ouvidos, o CD que reúne BB. King e Eric Clapton, que o mundo já deve até ter cansado de ouvir. Pois pra mim, que sempre tropeço atrasado numa revelação banal de esquina, foi como ouvir a primeira missa, celebrada pelo próprio deus King com seu sacristão Clapton. Ouvi aqui em Acari, RN, onde estou desde quarta-feira, sempre na sala da casa da minha cunhada Sandra, que é uma espécie de varanda aberta para a rua. Nas janelas, passa o tempo todo um filme sem diretor, com a participação especialíssima dos populares que sobem e descem a rua da Matriz. Fachadas com ecos da década de 30, caminhões que cortam a BR-226, muito chapéu como os que usava meu pai, a edição vai se compondo desses elementos. Agora imagine tudo isso com B.B. King e Clapton tocando blues no seu ouvido.


Não foi nada planejado, eu apenas comprei o CD porque finalmente o encontrei naquelas promoções das lojas Americanas (eu tenho muitos compromissos, meu amigo, não posso empregar o meu dinheiro com os discos que muito me interessam), botei na mala de “supérfluos” que sempre trago a cada viagem e, aqui, finalmente resolvi ouvir. E encontrei a trilha sonora perfeita para o cenário desta cidade: uma música que vem de outro interior habitado a duras penas e colonizado a ferro e fogo, com todas as chagas que essa ocupação produz, e todas as musicalidades que essas coisas são capazes de provocar.


É por isso que, no Mississipi ou no Seridó, com um pouco de esforço dá sim pra ouvir a voz de Deus. Se você não tiver à mão um B.B.King para ouvir, experimente um Luiz Gonzaga que a epifania muito provavelmente será a mesma.


* Repeteco de um post publicado originalmente em agosto de 2009 quando, como diz o relato, estávamos em Acari-RN numa temporada de férias. O espírito do tempo permanece, o que valida o replay.

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