segunda-feira, 24 de setembro de 2012

A alegoria do açude


Vicente Serejo escreveu o texto abaixo, publicado no blog do Sebo Vermelho. É interessante e instigante demais não ser copiado e passado adiante: 

O sertão de Oswaldo Lamartine, desde A Caça nos Sertões do Seridó, seu livro de estréia, em 1961, foi sempre erguido com a literariedade das coisas materiais e ao mesmo tempo alegóricas. Um território épico e lírico ao mesmo tempo, marcado pela dura realidade de um chão de espinhos e, ao mesmo tempo, forrado de flores. É como se a vivência do etnógrafo e as lembranças do menino se misturassem nos olhos do escritor, fazendo da narrativa a argamassa da construção e da reconstrução.
 
    E uma das narrativas mais exemplares dessa fusão que de um lado documenta e do outro liberta a imaginação é exatamente este ensaio que merece uma nova edição, agora autônoma, depois de ter sido parte integrante de 'Sertões do Seridó', a reunião dos olhares oswaldolamartianos, editados pelo Senado Federal com prefácio erudito e consagrador do professor Francisco das Chagas Pereira que faz, certamente, a primeira tomada de posse acadêmica e ao mesmo tempo literária da obra de Oswaldo.
 
    Cuidadoso no esmero e na exatidão da síntese, Oswaldo nada esquece quando documenta. Sabe cumprir o belo aprendizado que reconheceu ter guardado de leituras e conversas com Câmara Cascudo ainda quando espiava, espiava e não via o sertão monumental. E o homem feito no talhe de um grande leitor descobre o outro sertão que ia além, muito além daquelas serras da infância. E é este sertão que ele ergue. Épico e lírico, entre pedras e páginas, silêncios e palavras, numa pastoral de reencontros.
 
    Quem mergulha nas águas do seu açude, cristalinas de tão cheias de sol ou turvadas das chuvas nas invernadas do sertão, vai descobrir que o açude grande, de verdade, e o pequeno, invenção dos meninos, são feitos da mesma carga emocional. Não é à toa que ele vai buscar numa quadrinha popular de José Lucas de Barros a certidão, como um ferro de gado, para marcar o que precisa reservar como posse e domínio:

    Vendo d'água a terra cheia
    Eu sinto doce lembrança
    Do meu tempo de criança,
    Dos meus açudes de areia   

    Na porteira deste seu ensaio que agora o Sebo Vermelho reedita, Oswaldo teve o cuidado de demarcar o açude como um território dessa infância que reconstrói a cada livro e que nasce do seu olhar de sertanejo cósmico e universal. O seu açude não é apenas o lugar que os homens da civilização da seca inventaram, nas gargantas das serras, para que as águas fossem prisioneiras da necessidade humana. É também, com as suas águas, um símbolo de vida, o lugar bíblico da criação.
 
    Eis sua descrição na abertura do texto, antes dos aspectos históricos e técnicos, estabelecendo estética de uma cartografia alegórica e, por isso mesmo, livre do apenas real.
   
'Espia-se a água se derramando, líquida e horizontal, pela terra adentro a se perder de vista. As represas esgueiram-se em margens contorcidas e embastadas, onde touceiras de capim de planta ou o mandante de hastes arroxeadas debruçam-se na lodosa lama. O verde das vazantes emoldura o açude no cinzento dos chãos. Do silêncio dos descampados vem o marulhar das marolas que morrem nos rasos. Curimatãs em cardumes comem e vadeam nas águas beirinhas nas horas frias do quebrar da barra ou ao morrer do dia. Nuvens de marrecas caem dos céus. Pato verdadeiro, putrião e paturi grasnam em coral com o coaxar dos sapos que abraçados se multiplicam em infindáveis desovas geométricas. Gritos de socó martelam espaçadamente os silêncios. O mergulhão risca em rasante vôo o espelho líquido das águas. Garças em branco-noivo fazem alvura na lama. É o arremedo, naqueles mundos, do começo do mundo... '.

    Este é Oswaldo Lamartine. Épico e lírico. Real e irreal. Verdadeiro e alegórico.

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Um papo com Lira




O Leitor Bagunçado, personagem de mim mesmo responsável pela coluna ali ao lado de indicações de livros possíveis, convida o leitor da Hamaca a apreciar por uns bons 50 minutos (na primeira parte, há uma segunda também) a conversa entre o jornalista Roberto D’Ávila e o jornalista e escritor Lira Neto, cearense que entrou para a sala vip dos biógrafos brasileiros, depois de labutar nas redações do seu estado e trabalhar como assistente de Fernando Moraes. Lira Neto está inscrito na fila de leituras à espera do Leitor Bagunçado, que ganhou de presente não faz muito tempo o seu “Maysa”, escrito com base nos diários que a própria cantora escreveu dos 15 anos até dias antes de morrer. E tem este novo “Getúlio” acenando das livrarias na fissura por também conseguir um lugar nesta fila.

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Dia sete



 
         Cheguei da caminhada habitual, lavei o suor do corpo com um banho e botei uma bermuda verde-oliva. E isso é tudo o que posso fazer em homenagem à presente data, ao contrário das minimultidões que estão no presente momento em que componho essas mal digitadas torrando ao sol sertanejo de Brasília para ver a parada comemorativa da independência passar. Se fosse presidente da República ou comandante do Exército, condecorava cada uma, um por um desses bravos brasileiros, entregando as mais merecidas medalhas ao longo de todos os alambrados que separam os soldadinhos do povão. Para suportar o calor e a claridade que nesta época parecem fazer de Brasília Citi uma espécie de Big Brother Climático, uma grande torradeira envidraçada, merecem medalhas e salvas de tiros de canhão.

     
      Se você colocar nesta lista de obstáculos naturais à comemoração do sete de setembro, além do calor africano e da claridade ofuscante um terceiro – e bem mais rigoroso – elemento climático, a minimultidão passa a merecer não apenas salvas e medalhas, mas alguma coisa como um milionésimo de real do Produto Interno Bruto do ano  de 2011: este último agravante é quase um símbolo da capital do país, tão significativo sobre ela quanto são a rampa do Planalto e os pratos do Congresso – a seca, ela mesma.

    
      Vivemos dias de com umidade do ar entre 16 e 20%; com 191 queimadas devastando o cerrado em volta da cidade só nos primeiros quatro dias de setembro; e com pelo menos mais um mês de estiagem pela frente. Essa semana os incêndios, que costumam ser mais democráticos do que a tradição brasileira, lamberam as beiradas de uma mansão numa área meio rural e meio urbana como é tão típico por aqui, da mesma maneira como esturricaram para todo o sempre um conjunto de barracos de madeirite onde se abrigavam e guardavam os pertences uma comunidade de catadores de lixo, nos fundos do terreno onde fica o Centro Cultural Banco do Brasil. Aí estão mais três símbolos de Brasília: mansões meio urbanas e meio rurais, catadores de lixo e queimadas.

      Agora me responda: dá pra sair às ruas animadamente pra comemorar o sete de setembro, lembrando que arquibancada coberta na Esplanada é requisito de autoridade constituída e munida de senha e crachá? Não, melhor ficar em casa curtindo o outro lado, mais comezinho, da seca brasiliense. Como o quê? Como imaginar que na segunda-feira você poderá encostar o ombro naquele mala sem alça que por acaso é seu colega de trabalho, dando o que parece ser um esbarrão camarada mas que na verdade é um jeito de corpo de alta letalidade. Com as roupas ressecadas como ficam nesta época, o vinco da manga da sua camisa estará tão rígido, mas tão rígido, que é capaz de cortar qualquer ombro amigo no que parece um encontrão acidental ou camarada. É chegar junto e depois se desculpar pelo talho aberto pela manga-punhal. E que ninguém estranhe tanto essa imaginação pra lá de violenta, que ela muito certamente também é, assim como aquela dor de cabeça esquisita e constante e o nariz implorando por uma minibritadeira de quebrar asfalto, um sintoma da nossa querida seca. Agora me providencie um copo d’água, por obséquio.
 
* A foto que ilustra o post é quase uma provocação: o Lago Paranoá, das poucas reservas de umidade de que nos valemos neste período do ano.

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