segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Goyaz

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Cenas da Cidade de Goiás durante o feriadão da Proclamação da República: é um goianinho curtido pelo tempo carregando seu matulão, é o almoço no mercado, é o anúncio do mototáxi no chão da calçada, é a bicicleta de plantão e por aí afora. Não chega a ser nenhum Photo&Grafia da sempre esperta Zuleika de Souza, mas são imagens que tocam o coração de quem veio de uma outra versão deste mesmo mundo interior.

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Nossos leitores




O título acima não se refere aos leitores do blogue (antes que perguntem, gosto dessa grafia, que é a forma como o ex-blogueiro cearense-potiguar Francisco Sobreira empregava no seu desativado diário; soa mais português, a palavra impressa parece sair mais cantada). Os leitores em questão aqui são dois, bem específicos, cujas circunstâncias os coloca num patamar ainda mais especial quando se trata do exercício de submergir numa massa de textos e dela extrair imagens, mistérios, verdades, novidades e fascinantes interrogações. Nossos leitores são Bernardo e Cecília, nossos filhos que todo dia surpreendem a gente na simpatia que vão tomando pelos poderes da palavra escrita - sem precisar abrir mão das mais convencionais formas de diversão da idade deles. 

Aviso que este é um post absolutamente família, tipicamente "hamaca de poti" - porque, se o leitor não percebeu, aqui está precisamente a diferença, sutil diferença que não precisa gritar seu nome por aí, entre a Hamaca e o Sopão. Continuemos: os livros, nesta idade, e apropriados a esta idade, com massa de textos mais esparsa, ilustrações que servem de pontuação gráfica e demais recursos, vêm mesmo é do contato com os amigos. A primeira literatura é a literatura "da turma" (as demais não seriam? sim, até certo ponto mas só até ele). Foi assim que os livros da série "Os Seis" pegaram a mim e a meus amigos nos tempos do antigo curso primário, ali pela quarta-série, numa cidade que, sem livrarias, valia-se do reembolso postal para conseguir fazer chegar os livros.

Voltando ao presente, vamos a Cecília, que demorou para aprender a ler - pais, relaxem, é normal - e um dia nos pediu o livro inicial da série da "Garota nada popular": são cinco tomos, graficamente escrito numa tipologia que imita a caligrafia infantil, pontuada por charges, e, sinal dos tempos - pelo menos foi assim que percebi pelas poucas vezes em que peguei os livros - centrada não na criança-modelo, mas exatamente no seu oposto: aquela que não acerta, que faz tudo errado, que se atrapalha. Considerei saudável, embora sabendo que há um modismo inerente a essas séries às quais a meninada não resiste (o mesmo se pode dizer dos brinquedos; ora é a indefectível Barbie - pais, relaxem, é assim mesmo, depois passa - ora é, como agora (até quando, hein?) as bonecas Monster High. 

Pois bem, leitores, Cecília leu todos os cinco livros da série. Assim, sem que a gente tivesse sequer tempo de nos dar conta da rapidez. Empacou agora no sexto volume - que saiu há pouco tempo - porque viciou-se (relaxe, pai, agora sou eu que digo pra mim mesmo) no YouTube. Fui fazer a besteira de mostrar pra ela - justo por causa da Monster High - o video do Thriller de Michael Jackson... Pra quê? Ela aprendeu a pilotar o canal de videos, fez um curso completo nas músicas do astro americano e agora, depois que uma colega "do quarto ano" tocou ao piano e cantou "Let it be" sozinha numa apresentação na escola, está se iniciando no mundo dos Beatles, via YouTube... Vai ser difícil ela terminar de ler o último volume da Garota nada popular. 



Enquanto isso, Bernardo - que aprendeu a ler na velocidade e naturalidade de um espirro - pediu pra gente o equivalente masculino da série da Garota nada popular: sim, senhor, o igualmente indefectível "Diário de um banana". Pelo título dá pra ver que o espírito é o mesmo: rir da própria figura e das trapalhadas que fazem parte da infância. A molecada se identifica. Acontece que Enrico, o melhor amigo de Bernardo na escola, andava lendo o volume inicial do Banana (depois deste inicial, o leitor escolhe um dos outros vários títulos para continuar acompanhando o personagem e suas históricas). 

Compramos o primeiro livro e ficamos ali, achando que com a eletricidade que lhe é própia, Bê não ia passar da página 15. Pois ele saiu da livraria já lendo o livro enquanto caminhava - o que por sinal virou um hábito, mas Sandra, irmã de Rejane, garante que a mãe de Bernardo lia andando de bicicleta! Quando vimos, Bernardo, no mesmo dia em que o livro foi adquirido, já passara da página 80. O livro foi comprado num sábado e na terça seguinte o nosso leitor já havia dado cabo. Precisou esperar até o sábado seguinte para ganhar mais um volume - que, mantendo o ritmo, leu durante a semana. Pessoal, é o seguinte: Bernardo está lendo um "Diário de um banana" por semana!

Não é pra menos: fui ler um trecho pra saber o que estava oferecendo ao meu filho e tive um ligeira crise de riso: a parte que li fala de uma armação do Banana - que é como Bê chama o personagem - para arrancar dinheiro dos amigos: ele monta  no porão da casa de um colega o que seria uma espécie de casa assombrada. Paga-se o valor do ingresso - que ele aumenta por dez quando vê a inesperada fila se formar - e ganha-se o acesso ao "salão do sangue", quarto de não sei mais o quê e assim por diante. Claro que é tudo improviso e que depois do primeiro pagante o pai do colega, dono da casa, desmancha aquela bagunça toda. 

Mas como é divertido, sobretudo se você tiver no seu currículo infantil a aventura de ter inventado um cinema usando uma caixa de papelão grande com um furo no meio, histórias em quadrinhos coladas como se fossem um filme e uma vela para fazer o efeito da projeção. E se tiver, claro, cobrado um ingresso de dez centavos de cruzeiro para quem quisesse entrar no cinema que você montou com seu seu primo tão esperto quanto você. E cuja sessão durou só um dia porque algum adulto não gostou muito desse espírito empreendedor e tratou de fechar o estabelecimento.  

Enfim, é nesse cruzamento de brincadeiras pouco rentáveis mas certamente muito criativas com narrativas de outros empreendedores iguais a você que essas séries vão formando novas levas de felizes - e introspectivos, e curiosos, e contemplativos - leitores. O que surpreende a gente é quando tais criaturas aparecem no sofá da sala da casa da gente. Do tipo que quando a gente chama - vai almoçar, menino! - ele demora pra escapar das garras de tão envolvente leitura. E que isso esteja acontecendo em tão - como é que se diz? - "tenra idade". Nossos leitores estão por aí, em casa, no carro, às vezes lendo enquanto caminham na calçada, e a gente fica feliz de passar esse bastão pra eles, sem que tenhamos feito qualquer grande esforço para isso acontecer. O máximo que fizemos foi o mesmo que eles: não conseguir nos livrar dessa mania besta de estar sempre lendo - e não ter o pudor de exercer tal vício na frente deles. 

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Chuvas, litorais, telhados e praias



Amanhece um dia de chuva sobre o Sudoeste organizado que me arremessa feito nuvem de verão diretamente sobre os telhados curvos da praia de Pipa. Não agora, mas lá pelos idos de 1993-94, quando fomos todos, eu, Rejane, os cunhados Sandra e Novo com Raísa criança e Rafael ainda bebê, meu pai e minha mãe passar um fim de semana na pousada de Ana Anita, a “Praiana” que fica naquela rua onde durante anos a areia natural venceu o calçamento oficial. 


Houve sol (fotos abaixo), mas houve também muita chuva, razão da nostalgia disparada pelo gatilho da manhã em branco. Não tinha importância, como não tem agora, já que o que contava então e conta aqui é a emergência da umidade litorânea. Só quem veio do sertão habitualmente seco – mas extremamente verde e multicor quando as chuvas da infância vinham – pode entender a força dessas águas. Às vezes só o tempo nublado já basta para anunciar sua iminente presença, aproximação amiga. 


À tarde, víamos a chuva cair como um cobertor macio sobre os telhados de Pipa, retocando as cores daqueles tetos, muitos deles de casas ainda humildes hoje derrubadas para dar lugar aos novos empreendimentos. A praia toda, o horizonte inteiro que um quarto tipo família no andar superior da pousada oferecia à vista, ganhava uma mão de pintura natural que fazia ainda mais luminosa a paisagem em volta. Lembro da fachada de um antigo bar, o Hendrix, e da linha do mar com um verde-azul mais saturado boiando sobre os telhados, caixas d’água, murinhos e folhas de coqueiro. E a sinfonia dos pingos regendo tudo.  


Essa umidade entra pelo corpo da pessoa, faz algo como uma transfusão natural do líquido que domina grande parte do nosso organismo. Quem já nasceu em meio a ela pode não perceber, mas os esqueletos sertanejos como eu a experimentam como um milagre não registrado nos cartórios vaticanos. É exatamente o mesmo tipo de sensação que tinham quando, adolescente, passava temporadas na casa do amigo Ítalo em Recife, e também mais tarde quando atravessei todo o ano de 1984 cursando Comunicação da Universidade Católica de Pernambuco: bastava o ônibus da Viação Progresso, vindo de Campina Grande, aproximar-se de Goiana e aquele verde da costa já começava a operar suas químicas na minha ressecada pessoa. A Zona da Mata sempre terá algo de paraíso perdido ou inalcançável - e o nômade Severino do poema de João Cabral é prova disso.

Até hoje há uma planta que me evoca essa epifania de geografia humana. Queria ser minimamente conhecedor da botânica para indicar o nome aqui: tudo o que posso dizer é que ela cheira a umidade do mar e felizmente está em todo lugar, como se fosse uma embaixada da costa onde menos se espera. Quando isso acontece, eu e Rejane quase disputamos para ver quem detecta primeiro: “Aquela planta...” 

Estrada de Trancoso 
Anos mais tarde o prazer da imersão neste mundo-litoral se faria ainda mais forte. Foi quando visitei a Costa do Cacau e espalhei restos do meu queixo caído nas estradas deste litoral baiano ao deparar com a autêntica paisagem descritas nos romances de Jorge Amado - e, mais impressionante ainda, com pessoa que pareciam ter pulado dos livros diretamente à realidade. 

Não é que a gente duvide dos autores que nos habituaram à dádiva da leitura: é que é muito forte - ao menos para corações desprevenidos, como o meu - dar de cara na estrada velha de Trancoso com uma baianinha cheirosa e adornada que por todos os efeitos lembra mais um personagem caprichosamente composto do que alguém de verdade. O mesmo se pode dizer de um velho tangendo bichos no acostamento de uma BR próxima a Itacaré - assim como de todas as crianças que habitam essa comunidade famosa pelos costões de coqueiros e rochas junto ao mar (registros dessa viagem nas fotos abaixo)




Toda essa peroração pessoal em torno de chuvas, litorais, telhados e praias o senhor leitor encontra em termos muito mais apropriados em Gilberto Freyre, fonte evidentemente muito mais autorizada. Sugiro que vá direto a “Nordeste”, o livro do velho sociólogo onde achei, em milimétricos detalhes e calorosas interpretações – o melhor de Gilberto é que ele escreve sempre com paixão – as explicações para esse meu apego nostálgico a essas coisas do litoral. 


O que o morador do casarão de Apipucos me disse, como quem assobia uma canção de Caimmy ao pé do ouvido, foi que o segredo deste fascínio está na doçura muito própria dos tabuleiros do litoral nordestino. E, embora se apoie nisso, a conexão com o cultivo da cana-de-açúcar vai além de uma abordagem meramente econômica.

Mel de engenho

"A cana-de-açúcar é uma planta profundamente ligada à água, ao contrário da planta que foi sua concorrente na ocupação do espaço nordestino, o algodão. Daí a separação entre as áreas de cana e as de algodão, entre o Nordeste úmido e o Nordeste seco", antecipa Manoel Correia de Andrade, professor da UFPE, na apresentação do livro de Freyre. 

Ao que o autor acrescenta, depois de reclamar da visão de um Nordeste unificado então vigente - hoje, bem menos, graças à feliz intervenção dos produtores de cultura desta nossa variada região: "Esse Nordeste de figuras de homens e de bichos se alongando quase em figuras de El Greco é apenas um lado do Nordeste. Mais velho que ele é o Nordeste de árvores gordas, de sombras profundas, de bois pachorrentos, de gente vagarosa e às vezes arredondada quase em sanchos-panças pelo mel de engenho, pelo peixe cozido com pirão, pelo trabalho parado e sempre o mesmo, pela opilação, pela aguardente, pela garapa de cana, pelo feijão de coco, pelos vermes, pela erisipela, pelo ócio, pelas doenças que fazem a pessoa inchar, pelo próprio mal de comer terra."

Tem mais: "Um Nordeste onde nunca deixa de haver uma mancha de água: um avanço de mar, um rio, um riacho, o esverdeado de uma lagoa. Onde a água faz da terra mais mole o que quer: inventa ilhas, desmancha istmos e cabos, altera a seu gosto a geografia convencional dos compêndios."

E segue o livro com sua antropologia poética que abarca tanto o cheiro de chuva quanto as pestilências que o litoral, como o sertão, também tem. Doce ciência a embrulhar com papel de pensamento a matéria que os dias de chuva nos entregam em forma de saudade.

domingo, 13 de outubro de 2013

Na contracapa do verão



O título remete a um clássico filme oriental e parece apontar, uma vez reaproveitado no livro, para uma trama meio faroeste brazuca. Mas não é nada disso e mais do que a barba, o que temos no livro do momento escrito por Daniel Galera é uma alma empapada em sangue. Matéria escura, viscosa e repleta de componentes que reforçam os infartos intermitentes desta alma jovem que o livro abre e investiga como quem faz a autópsia de um ser vivo vitimado todos os dias pelo câncer da angústia.

Estamos em Garopaba, sítio de verão mais que conhecido do litoral de Santa Catarina, e transitamos entre lojinhas de estação, bares nem sempre abertos, pequenos postos de saúde, mercadinhos, gente em trânsito, sem futuro definido ou maiores amarras. Neste cenário dá-se a anti-aventura absoluta de um típico turrão - ainda que ele tenha, aparentemente, menos de 30; faixa etária em que este modo de ser no mundo ainda não se cristalizou. "Barba ensopada de sangue" é o livro que enumera as antiperipécias de um turrão em formação: o cara naquela etapa da vida em que começa a colecionar o amargor de dados momentos; quando a personalidade vai fazendo curvas mais derrapáveis; virando a esquina pisando em sandálias que começam a ficar gastas e a pedir substituição. Mas ele, como bom turrão em processo de sedimentação, segue caminhando indiferente ao estado de si próprio e do mundo em volta. Há, em paralelo, a clássica investigação sobre o papel do pai, aqui reelaborado na figura de um avô desaparecido - e quase mitificado; o que não deixa de ser um ingrediente e tanto no difícil preparo que resulta na figura de um turrão juramentado.

Tudo transcorre em aprazível velocidade de cruzeiro literário, a formação do turrão e o argumento narrativo reforçado de que este tipo de pessoa sempre terá suas razões - seu troféu e ao mesmo tempo sua ruína. Há um ritmo e um fluxo constante de fatos e não-fatos, de pequenos incidentes e grandes manifestações habilmente sugeridas - como a aversão da comunidade a este jovem e sua ascendência - , compondo este recorte na vida de um atleta  gaúcho metido na contracapa da aldeia de verão, já que tudo se passa num inverno anticlimático por excelência. Se fosse um Harold Robins ou similar, Daniel Galera poderia ter dado a este livro o título folhetinesco de "O outro lado do feriadão". E escrito nas orelhas para os leitores menos pacientes: uma aventura praieira sobre solidão, família, mitos urbanos e a necessidade de isolamento que todos temos. Seria tudo verdade, cada um dos itens prometidos. Mas a abordagem, que em muitos momentos me lembrou o livro do amigo Carlos de Souza - "Crônica da banalidade", editado em Natal em 1988 - é que ensopa de tempero literário diverso essa barba de narrativas desfiadas em possibilidades, chaves e acasos. Definitivamente, este é um romance que não foi escrito para ser lido à beira mar durante as férias.

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

O melhor do mundo

Havia prometido a Bernardo trazer no final de semana umas figurinhas do álbum que ele está montando. No meio da semana, depois do Kumon, fomos à banca mas as figurinhas, como se dizia no tempo em que quase tudo era muito mais escasso, estavam em falta. Alguma coisa hoje em dia ainda pode "estar em falta"? Pois as figurinhas do álbum do Meu malvado favorito estavam em falta na quarta-feira nas duas bancas que procuramos, aqui entre as comerciais e residenciais do Sudoeste/Cruzeiro. 

No início da noite de sábado, depois de dar um plantão no hospital pra baixar uma pressão alterada certamente pelos efeitos da seca de Brasília, dei uma incerta numa banca do caminho para casa e as figurinhas tinham chegado. Comprei cinco pacotes para Bernardo e cinco para Cecília - assim eles trocam as "duplicatas", outra palavra que o tempo recolheu ao dicionário mas a volta dos álbuns de figurinhas bem pode trazer de volta à boca dos pequenos e dos adultos saudosistas dos suas próprias infâncias, que felizmente não são poucos. 

Aqui é que está a história: no momento em que, entrando em casa, entreguei os pacotinhos de figurinhas a Bernardo. Ele, em pé mesmo como estava pulando no sofá, abriu os braços e num arroubo que não é muito apropriado de sua pessoa, declarou em altos brados:

- Você lembrou? Você é o melhor pai do mundo!

Já fui criança, já fui filho pequeno e também já colecionei álbum de figurinha o bastante para saber que grande parte dessa declaração está comprometida pela alegria de receber um presente inesperado - ainda que vagamente prometido no decorrer da semana. 

Mas também sou pai o bastante para ter ficado comovido, a ponto de cometer aqui a inconfidência que um Bernardo futuramente adulto talvez até venha a repreender. Acontece que o arroubo do meu filho, cem por cento genuíno ou não, causou aquela espécie de comoção que a gente não consegue segurar, embora disfarce bem no momento em que se dá. 

O fato de as figurinhas terem chegado e de Bernardo tê-las finalmente em mãos, por intermédio de minha pessoa, pode ter comprometido a sinceridade da declaração do meu garoto. Mas o ímpeto e a energia autêntica com que ele botou pra fora aquela frase, externando de imediato seu contentamento em forma de título a mim concedido foi, naquele instante, bom demais. 

Diante do pequeno discurso de agradecimento, só posso responder com seu equivalente tão sincero quanto, dizendo em alto e bom som que Bernardo e Cecília - que expressa seu sentimento de maneira diversa mas não menos intensa - são os melhores filhos do mundo. 

terça-feira, 27 de agosto de 2013

Canteiros de Débora


A descoberta de um novo poeta, um talentoso escritor desconhedio, um artista iluminado deve ser motivo de festa. Se eu fosse proprietário de um sítio, uma fazenda, uma comunidade ou uma igreja, ordenava imediatamente a realização da mais estrelada quermesse apenas para comemorar o fato de haver sido apresentado à pessoa de Débora Brennand, poeta pernambucana cuja trajetória e literatura tem muito em comum  com figuras como Cora Coralina, Manoel de Barros, Zila Mamede.

A goiana Cora exercitou sua poesia enquanto preparava doces e compotas à beira dos tachões em sua bela cidade de Goiás. O pantaneiro Manoel só foi nos entregar sua poesia após décadas de uso de um disfarce insuspeito: era administrador da fazenda que herdou do pai. Pois Débora Brennand é como se fosse uma fusão desses dois seres que a antecederam em termos de revelação no grand monde dos literatos em geral: mocinha, depois de estudar por cinco anos num internato no Recife, passou um ano e meio na Europa para retornar ao engenho-fazenda do pai, que se tornaria o objeto direto de sua existência pelas próximas décadas.



É isso, leitor: Débora Brennand é uma personalidade forte, elegante e sensível - é possível juntar estas três características no mesmo ser humano, agora está mais uma vez provado - que se deixava traduzir em poesia enquanto administrava a fazenda paterna. Descobri a poeta e sua trajetória assistindo a um documentário (acima) no canal Curta! (113 no meu pacote da NET; veja aí no seu que há muitas outras surpresas lhe esperando). Tomava conta das plantações, regava seus jardins e, pelo que entendi do documentário, transformou o que era um engenho num próspero e modelar negócio de criação de gado e cavalos de raça. Entende como ninguém de nelore, títulos, leilões e jumentas - e fez disso tudo, incluindo as jumentas, matéria de sua abrasiva e ao mesmo tempo mansa poesia.

Enquanto vencia, na qualidade de única e surpreendente mulher na disputa, concursos de gado de raça em exposições agropecuárias, Débora Brennand ia escrevendo coisas assim:

Assim, além da cerca, eu espero,

O quê? Não sei. Espero.

Embora só o vento chegue

todo arranhado, em gemidos,

caindo e já sem sentidos


Jogue aos meus pés as folhas secas


("Sempre")

Sua poesia, pelo pouco que conheci no documentário e do que encontro na internet (leitor, quando for a Pernambuco, faça uma boa ação, traga um livro dela pra mim), tem essa forte marca que decorre da experiência direta sobre as coisas da natureza e do homem. É quase mítica nas evoluções que realiza em torno da terra, do sol, das folhas. Remete a um mundo de sentimentos ruralizados, a um torrão primordial que ela usa como barro das palavras.

É aqui que Débora Brennand me lembra Zila Mamede, a nossa Zila que circulou em versos entre Currais Novos e a praia do Forte, entre bibliotecas e anotações. Somente os universos ricos em sensações e transcendências parecem capazes de gerar poetas de tal intensidade: Goiás parindo Cora, os bichos e ciscos do Pantanal erigindo Manoel, o sertão e o mar da terra potiguar preparando Zila e, agora, nesta feliz descoberta, uma fazenda pernambucana plantando Déboras.  

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Domingo no parque















Programa de domingo no Parque da Cidade, BSB Citi. Divertido e sem custo, porque a natureza não cobra ingresso. Só exige que você esteja à altura dela e se sinta em casa. (clique nas fotos para ampliar)

Vida interior

Por estes dias esteve nos visitando Deise, que durante uns dois anos trabalhou aqui em casa, ajundando a mim e a Rejane a manter Cecília e Bernardo limpos, alimentados e felizes como tem que ser ou o quanto seja possível. Quando Deise trabalhava com a gente, Bernardo ainda era bem pequeno, naquela idade em que as memórias nem sempre ficam fixadas o bastante para serem lembradas um ou dois anos mais tarde. No dia da visita, Deise chegou, falou com eles, brincou, sorriu e recebeu sorrisos de volta de Cecília - de memória já mais adiantada - e a desconfiança sedutora de Bernardo, que sempre adota este método quando encontra ou reencontra alguém.

Era dia de Kumon e precisamos sair. Na garagem, perguntei a Bernardo se ele lembrava de Deise. A resposta é o que importa nesta curta mas intensa história escrita aqui:

- Por fora, não. Mas por dentro eu me lembro.

terça-feira, 20 de agosto de 2013

1973


O que seria da comunicação de massa sem as efemérides? Me apresente uma edição de jornal ou de revista que não tenha ao menos um texto ancorado no dia de alguma coisa que eu lhe premio com uma assinatura anual da dita publicação. Quando não é assim temos a efeméride da contagem do tempo: agora mesmo, em quantos jornais, sites e revistas você não viu, apresentadas com destaque como se cada um deles tivesse descoberto o calendário romano, a lista dos discos que, lançados em 1973, estão fazendo 40 anos? Aquele Melodia da "Magrelinha", o primeiro Raimundo Fagner, o outro que apelidaram de "álbum branco de João Gilberto", sem falar no Pink Floyd mais regressivamente progressivo...


Eu sei, é divertido: esse tipo de efeméride, em última instância, dispensa discos, livros, capas e datas. O que ele proporciona de mais interessante mesmo - e para além das caixas registradoras que se escondem por trás de quilos de reportagens de jornal e similares - é a memória de nós mesmos. Você rememora o disco, o filme, o livro daquele ano e se vê teletransportado para outro tempo e lugar. Em questão de instantes estará medindo progressos, recuos, resultados ou perdas que aquele mesmo senhor, o tempo, deixou em torno do que sua pessoa foi e do que imaginou que seria, ou poderia ter sido. Sem falar nas variáveis do contexto em volta que parece ter feito de você um brinquedo metafísico.

1973: sem dinheiro, interesse nem idade para consumir qualquer daqueles futuros consagrados discos no instante em que foram lançados, contabilizava eu, assim como os que vieram ao mundo no distante ano de 1966, sete iniciantes anos de idade. Meu primeiro ano no Grupo Escolar Barão do Rio Branco. Primeira série, alfabetização de fato. Uma casa rústica numa rua sem pavimentação feita com muito esforço pelo meu pai - um recanto de aconchego garantido pela minha mãe. Pela manhã, brincadeira de rua; à tarde, escola; no fim da tarde o temido banho; noitinha e noite, ponto nos televizinhos. Pantera cor-de-rosa, Chacrinha, a novela "Mulheres de Areia", TV Tupi. O supremo desenho animado "Hércules", que nunca mais se reprisou. O seriado Daniel Bonne, que a era das caixas de DVD trouxe de volta num dia feliz. 

Lá fora, bem lá fora, havia uma ditadura sanguinária combatida por uma classe média esclarecida, urbana e igualmente distante dali. Crianças, éramos protegidos pela idade e pela ignorância. Num terreno baldio onde se encerrava a cidade, formava-se uma roda de pessoas de idades, ofícios e qualidades variáveis e jogava-se um voleibol não competitivo. Sem campo nem rede; apenas um círculo onde o objetivo não era vencer o adversário que não havia, mas fazer o possível para a bola nunca cair. É uma boa imagem para traduzir o caráter estranho daquele momento: nos anos de chumbo, um jogo colaborativo como não se vê atualmente nesses nossos liberados anos 2000. Pensando bem, contradições sempre existiram. Essas eram nossas variáveis, e acho até que fizemos o melhor que podíamos com elas. 

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

No caminho das cachoeiras


Fim de semana recente, últimos dias de férias de Cecília e Bernardo, seguimos para quatro dias em Pirenópolis-GO onde, como é natural nesses passeios, tomamos o rumo de uma das inúmeras cachoeiras que ficam no entorno do município histórico. As cachoeiras de Pirenópolis normalmente exigem algum trabalho para que a gente consiga alcançar suas águas. É preciso fôlego e disposição para vencer estradinhas de terra - nesta época, mais seca, de muita poeira levantada pelo carro que invariavelmente está à frente do nosso; coisas com que já está acostumado quem conhece o lugar e seus apelos naturais. Tem que ter espírito de aventura, abrir o coração ao inesperado  - uma freada brusca, só pra citar um exemplo, nos envolveu numa bruma seca de areia branca desfeita em nuvem de pó durante intermináveis segundos - e pagar, dizendo melhor e simbolicamente, fechar os olhos para ver. Fomos à cachoeira do Abade que, mesmo com aquela infra-estrutura que os empreendedores do turismo rural há tempos já tiraram da algibeira, ainda oferece os obstáculos felizmente irremovíveis. E esse felizmente você vai entender já.

A cachoeira do Abade é daquele tipo que cai de um penhasco bastante alto e numa área de clareira, resultando em uma pequena praia no seu desaguar; um arco de sol e de umidade fria e farta no meio do cerrado inclementemente seco e quente. Mas, como sempre, fica um estranhamento: tanto deslocamento, tanta poeira na estrada, tantas curvas de um caminho que parece nunca acabar e, quando a gente enfim se vê diante da cachoeira - a gente e um penca de goiano-brasilienses ansiosos por um banho do que quer que seja - parece que a tal queda d'água não é tão-tão, como diria um personagem de Guimarães Rosa. 

Qual nada: o que a cachoeira, seu caminho, suas dificuldades e sua aparente insuficiência - por mais bonita e agradável que seja - nos revela em fins de semana como esse de dias atrás é a necessidade e o prazer do percurso. Pense em quantos livros o tão criticado - e tão lido - Paulo Coelho vendeu só falando sobre isso. Tão-tão: é necessário, ensina a cachoeira distante, sair da linha reta do todo-dia e percorrer a sinuosidade da estrada de rodagem para arrancar um pouco da poeira com que o conforto costuma recobrir a vida. A sensação boa que vem na volta para o quarto da pousada após aquele passeio até curto à cachoeira - levando em conta não o tempo do deslocamento, mas aquele que se passou efetivamente à sombra de suas águas - pode vir não exatamente daquele lugar tão fotografado, buscado, imaginado. Mas, sim, do trabalho que se tem de chegar lá: a exposição à intempérie natural que faz parte da nossa ancestralidade; a visão do vale goiano que se tem do alto da colina, a formulação de respostas para as mil perguntas com que as crianças pontuam o passeio todo; o sol ofuscante que faz graça das suas lentes escuras; até a fila na portaria da entrada oficial do lugar, que parece dizer que não cabe mais ninguém e depois de tanto esforço você vai ter que voltar - ou escolher outra cachoeira para lavar seu enganoso bem-estar. 

As cachoeiras de Pirenópolis estão todas à espera de despejar suas águas dentro das nossas desidratadas rotinas. E  para isso elas têm a sabedoria de impor suas gratificantes dificuldades, milimetricamente dispostas ao longo do enovelado caminho: reconhecer seus benefícios e dar o primeiro passo é a bandeirada inicial que, ao final, vai revelar que a cachoeira em si é só um adorno, uma cereja aquosa no bolo ressecado de uma pequena aventura de férias capaz de recobrir a vida de um novo sabor. Ou mesmo um sabor antigo, do qual eu, você ou todos nós que já fomos crianças cheias de dúvidas e de disposição nem nos lembrávamos mais. Dificuldades podem ser dádivas no caminho da cachoeira das Renovações - essa que embora não exista literalmente com este nome em Pirenópolis poderia ser a denominação comum de todas as outras que de fato existem por lá. 

quarta-feira, 24 de julho de 2013

O plano e o dique




    
     Pode ter a ver com o pibinho ou com a inflaçãozona, mantegamente falando. Ou não, vai ver é conseqüência do novo modo Papa Chico de levar a vida. O fato retumbante é que acendeu uma luz financeira no bolso do meu cérebro e decidi baixar um plano econômico sobre a minha dispendiosa pessoa. Funciona assim: fico proibido de passar perto de livrarias, especialmente quando se tratar de uma bookshopping atulhada de penduricalhos paraliterários; não devo mais ter acesso a prateleiras de DVDs promocionais ou nem tanto; só posso adquirir um novo livro quando o pessoal que está esperando na fila for devidamente lido e apreciado; cinema, lanchonete (ainda se usa essa palavra para definir o lugar onde se come ligeiro?), banca de revista em manhã de domingo, pacotinho CVC tentador, até estacionamento de shopping, tudo isso agora tá na linha de tiro. Minha meta é pra valer – e não tem nada de flutuante, não.

     Agora é tudo na ponta do lápis, com rigor para deixar enrubescido qualquer Arno Augustinho – ou seja lá como esse moço em plena fritura de fogo alto se chame. Seja lá o que ele faça com os números do Tesouro Nacional, do meu cuido eu. Já que falaram tanto na crise, que manchetaram tanto os dez mil monstros de sete cabeças que ela está prontinha para cuspir sobre o eternamente injustiçado povo brazuca, pois bem, resolvi fazer algo que nem todo mundo está disposto a realizar: a minha parte. Foi o bastante para descobrir algumas coisas, que divido com os interessados, apesar de saber que não fica bem falar de coisas assim muito pessoais na internet. Coisas pessoais são aquele tipo de confidência que, de um jeito ou de outro, acaba tendo a ver com dinheiro, classe, distinção e privacidade. E disso, é o que me dizem, só se deve deixar transparecer o necessário para impressionar. Um tantinho a mais e vai tudo por água abaixo. Por mais que este governo tente o contrário, ser referência no grupo será sempre uma arte para poucos, viu? Não sou eu que digo, são os iniciados, sempre eles.

     Voltando ao assunto, descobri que aquela coisa sem cor e sem forma que de vez em quando parece estar faltando mas ninguém – nem os descolados – consegue definir é mais simples do que parece. O que tantas vezes falta é um “plano”. Elabore o seu, defina objetivos, esquematize prioridades, arme estratégias, elimine o que não combina e, boom, seus problemas acabaram – se é que você tinha mesmo um. Foi decretar a minha NEP particular (a sigla aqui é uma referência aos draconianos planos econômicos da União Soviética mais primeva) e uma porção de evidências saiu estalando na minha frente, como luzes subitamente acesas nas paredes do ar. Um variedade de lugares públicos ou a preços módicos onde levar a garotada nessas curtas férias sem sair do Quadrado (o DF); um livrinho danado de bom de Raymond Chandler adquirido num sebo alguns anos atrás; e até a redescoberta de uns velhos filmes em videocassete que lhe jogam sem dó nem piedade diretamente nos anos 80, com a correspondente e saudável lembrança do quanto havia de menos naquele período e do quanto mais você tirava proveito daquele pouco. Coisas de um tempo anterior à derrubada do paredão da barragem do consumo online – esse dique esquecido e superado, cuja queda teve por efeito inundar tudo com tanto. E deixar tão pouco espaço para a apreciação lenta que tantas coisas, apesar de tudo, ainda precisam ter.

Passeio Fotográfico 1

















Ou: férias sem sair do Quadrado (clique dentro da foto para ampliar as imagens)

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