terça-feira, 27 de agosto de 2013

Canteiros de Débora


A descoberta de um novo poeta, um talentoso escritor desconhedio, um artista iluminado deve ser motivo de festa. Se eu fosse proprietário de um sítio, uma fazenda, uma comunidade ou uma igreja, ordenava imediatamente a realização da mais estrelada quermesse apenas para comemorar o fato de haver sido apresentado à pessoa de Débora Brennand, poeta pernambucana cuja trajetória e literatura tem muito em comum  com figuras como Cora Coralina, Manoel de Barros, Zila Mamede.

A goiana Cora exercitou sua poesia enquanto preparava doces e compotas à beira dos tachões em sua bela cidade de Goiás. O pantaneiro Manoel só foi nos entregar sua poesia após décadas de uso de um disfarce insuspeito: era administrador da fazenda que herdou do pai. Pois Débora Brennand é como se fosse uma fusão desses dois seres que a antecederam em termos de revelação no grand monde dos literatos em geral: mocinha, depois de estudar por cinco anos num internato no Recife, passou um ano e meio na Europa para retornar ao engenho-fazenda do pai, que se tornaria o objeto direto de sua existência pelas próximas décadas.



É isso, leitor: Débora Brennand é uma personalidade forte, elegante e sensível - é possível juntar estas três características no mesmo ser humano, agora está mais uma vez provado - que se deixava traduzir em poesia enquanto administrava a fazenda paterna. Descobri a poeta e sua trajetória assistindo a um documentário (acima) no canal Curta! (113 no meu pacote da NET; veja aí no seu que há muitas outras surpresas lhe esperando). Tomava conta das plantações, regava seus jardins e, pelo que entendi do documentário, transformou o que era um engenho num próspero e modelar negócio de criação de gado e cavalos de raça. Entende como ninguém de nelore, títulos, leilões e jumentas - e fez disso tudo, incluindo as jumentas, matéria de sua abrasiva e ao mesmo tempo mansa poesia.

Enquanto vencia, na qualidade de única e surpreendente mulher na disputa, concursos de gado de raça em exposições agropecuárias, Débora Brennand ia escrevendo coisas assim:

Assim, além da cerca, eu espero,

O quê? Não sei. Espero.

Embora só o vento chegue

todo arranhado, em gemidos,

caindo e já sem sentidos


Jogue aos meus pés as folhas secas


("Sempre")

Sua poesia, pelo pouco que conheci no documentário e do que encontro na internet (leitor, quando for a Pernambuco, faça uma boa ação, traga um livro dela pra mim), tem essa forte marca que decorre da experiência direta sobre as coisas da natureza e do homem. É quase mítica nas evoluções que realiza em torno da terra, do sol, das folhas. Remete a um mundo de sentimentos ruralizados, a um torrão primordial que ela usa como barro das palavras.

É aqui que Débora Brennand me lembra Zila Mamede, a nossa Zila que circulou em versos entre Currais Novos e a praia do Forte, entre bibliotecas e anotações. Somente os universos ricos em sensações e transcendências parecem capazes de gerar poetas de tal intensidade: Goiás parindo Cora, os bichos e ciscos do Pantanal erigindo Manoel, o sertão e o mar da terra potiguar preparando Zila e, agora, nesta feliz descoberta, uma fazenda pernambucana plantando Déboras.  

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Domingo no parque















Programa de domingo no Parque da Cidade, BSB Citi. Divertido e sem custo, porque a natureza não cobra ingresso. Só exige que você esteja à altura dela e se sinta em casa. (clique nas fotos para ampliar)

Vida interior

Por estes dias esteve nos visitando Deise, que durante uns dois anos trabalhou aqui em casa, ajundando a mim e a Rejane a manter Cecília e Bernardo limpos, alimentados e felizes como tem que ser ou o quanto seja possível. Quando Deise trabalhava com a gente, Bernardo ainda era bem pequeno, naquela idade em que as memórias nem sempre ficam fixadas o bastante para serem lembradas um ou dois anos mais tarde. No dia da visita, Deise chegou, falou com eles, brincou, sorriu e recebeu sorrisos de volta de Cecília - de memória já mais adiantada - e a desconfiança sedutora de Bernardo, que sempre adota este método quando encontra ou reencontra alguém.

Era dia de Kumon e precisamos sair. Na garagem, perguntei a Bernardo se ele lembrava de Deise. A resposta é o que importa nesta curta mas intensa história escrita aqui:

- Por fora, não. Mas por dentro eu me lembro.

terça-feira, 20 de agosto de 2013

1973


O que seria da comunicação de massa sem as efemérides? Me apresente uma edição de jornal ou de revista que não tenha ao menos um texto ancorado no dia de alguma coisa que eu lhe premio com uma assinatura anual da dita publicação. Quando não é assim temos a efeméride da contagem do tempo: agora mesmo, em quantos jornais, sites e revistas você não viu, apresentadas com destaque como se cada um deles tivesse descoberto o calendário romano, a lista dos discos que, lançados em 1973, estão fazendo 40 anos? Aquele Melodia da "Magrelinha", o primeiro Raimundo Fagner, o outro que apelidaram de "álbum branco de João Gilberto", sem falar no Pink Floyd mais regressivamente progressivo...


Eu sei, é divertido: esse tipo de efeméride, em última instância, dispensa discos, livros, capas e datas. O que ele proporciona de mais interessante mesmo - e para além das caixas registradoras que se escondem por trás de quilos de reportagens de jornal e similares - é a memória de nós mesmos. Você rememora o disco, o filme, o livro daquele ano e se vê teletransportado para outro tempo e lugar. Em questão de instantes estará medindo progressos, recuos, resultados ou perdas que aquele mesmo senhor, o tempo, deixou em torno do que sua pessoa foi e do que imaginou que seria, ou poderia ter sido. Sem falar nas variáveis do contexto em volta que parece ter feito de você um brinquedo metafísico.

1973: sem dinheiro, interesse nem idade para consumir qualquer daqueles futuros consagrados discos no instante em que foram lançados, contabilizava eu, assim como os que vieram ao mundo no distante ano de 1966, sete iniciantes anos de idade. Meu primeiro ano no Grupo Escolar Barão do Rio Branco. Primeira série, alfabetização de fato. Uma casa rústica numa rua sem pavimentação feita com muito esforço pelo meu pai - um recanto de aconchego garantido pela minha mãe. Pela manhã, brincadeira de rua; à tarde, escola; no fim da tarde o temido banho; noitinha e noite, ponto nos televizinhos. Pantera cor-de-rosa, Chacrinha, a novela "Mulheres de Areia", TV Tupi. O supremo desenho animado "Hércules", que nunca mais se reprisou. O seriado Daniel Bonne, que a era das caixas de DVD trouxe de volta num dia feliz. 

Lá fora, bem lá fora, havia uma ditadura sanguinária combatida por uma classe média esclarecida, urbana e igualmente distante dali. Crianças, éramos protegidos pela idade e pela ignorância. Num terreno baldio onde se encerrava a cidade, formava-se uma roda de pessoas de idades, ofícios e qualidades variáveis e jogava-se um voleibol não competitivo. Sem campo nem rede; apenas um círculo onde o objetivo não era vencer o adversário que não havia, mas fazer o possível para a bola nunca cair. É uma boa imagem para traduzir o caráter estranho daquele momento: nos anos de chumbo, um jogo colaborativo como não se vê atualmente nesses nossos liberados anos 2000. Pensando bem, contradições sempre existiram. Essas eram nossas variáveis, e acho até que fizemos o melhor que podíamos com elas. 

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

No caminho das cachoeiras


Fim de semana recente, últimos dias de férias de Cecília e Bernardo, seguimos para quatro dias em Pirenópolis-GO onde, como é natural nesses passeios, tomamos o rumo de uma das inúmeras cachoeiras que ficam no entorno do município histórico. As cachoeiras de Pirenópolis normalmente exigem algum trabalho para que a gente consiga alcançar suas águas. É preciso fôlego e disposição para vencer estradinhas de terra - nesta época, mais seca, de muita poeira levantada pelo carro que invariavelmente está à frente do nosso; coisas com que já está acostumado quem conhece o lugar e seus apelos naturais. Tem que ter espírito de aventura, abrir o coração ao inesperado  - uma freada brusca, só pra citar um exemplo, nos envolveu numa bruma seca de areia branca desfeita em nuvem de pó durante intermináveis segundos - e pagar, dizendo melhor e simbolicamente, fechar os olhos para ver. Fomos à cachoeira do Abade que, mesmo com aquela infra-estrutura que os empreendedores do turismo rural há tempos já tiraram da algibeira, ainda oferece os obstáculos felizmente irremovíveis. E esse felizmente você vai entender já.

A cachoeira do Abade é daquele tipo que cai de um penhasco bastante alto e numa área de clareira, resultando em uma pequena praia no seu desaguar; um arco de sol e de umidade fria e farta no meio do cerrado inclementemente seco e quente. Mas, como sempre, fica um estranhamento: tanto deslocamento, tanta poeira na estrada, tantas curvas de um caminho que parece nunca acabar e, quando a gente enfim se vê diante da cachoeira - a gente e um penca de goiano-brasilienses ansiosos por um banho do que quer que seja - parece que a tal queda d'água não é tão-tão, como diria um personagem de Guimarães Rosa. 

Qual nada: o que a cachoeira, seu caminho, suas dificuldades e sua aparente insuficiência - por mais bonita e agradável que seja - nos revela em fins de semana como esse de dias atrás é a necessidade e o prazer do percurso. Pense em quantos livros o tão criticado - e tão lido - Paulo Coelho vendeu só falando sobre isso. Tão-tão: é necessário, ensina a cachoeira distante, sair da linha reta do todo-dia e percorrer a sinuosidade da estrada de rodagem para arrancar um pouco da poeira com que o conforto costuma recobrir a vida. A sensação boa que vem na volta para o quarto da pousada após aquele passeio até curto à cachoeira - levando em conta não o tempo do deslocamento, mas aquele que se passou efetivamente à sombra de suas águas - pode vir não exatamente daquele lugar tão fotografado, buscado, imaginado. Mas, sim, do trabalho que se tem de chegar lá: a exposição à intempérie natural que faz parte da nossa ancestralidade; a visão do vale goiano que se tem do alto da colina, a formulação de respostas para as mil perguntas com que as crianças pontuam o passeio todo; o sol ofuscante que faz graça das suas lentes escuras; até a fila na portaria da entrada oficial do lugar, que parece dizer que não cabe mais ninguém e depois de tanto esforço você vai ter que voltar - ou escolher outra cachoeira para lavar seu enganoso bem-estar. 

As cachoeiras de Pirenópolis estão todas à espera de despejar suas águas dentro das nossas desidratadas rotinas. E  para isso elas têm a sabedoria de impor suas gratificantes dificuldades, milimetricamente dispostas ao longo do enovelado caminho: reconhecer seus benefícios e dar o primeiro passo é a bandeirada inicial que, ao final, vai revelar que a cachoeira em si é só um adorno, uma cereja aquosa no bolo ressecado de uma pequena aventura de férias capaz de recobrir a vida de um novo sabor. Ou mesmo um sabor antigo, do qual eu, você ou todos nós que já fomos crianças cheias de dúvidas e de disposição nem nos lembrávamos mais. Dificuldades podem ser dádivas no caminho da cachoeira das Renovações - essa que embora não exista literalmente com este nome em Pirenópolis poderia ser a denominação comum de todas as outras que de fato existem por lá. 

Postagem em destaque

O último cajueiro de Alex Nascimento

Começar o ano lendo um Alex Nascimento, justamente chamado "Um beijo e tchau". Isso é bom; isso é ruim? Isso é o que é - e tcha...