domingo, 7 de maio de 2017

Minha noite com Antonioni


Um dos maiores testes de resistência para o ser humano deve ser enfrentar uma crise de pigarro durante uma sessão de um filme de Michelangelo Antonioni. Principalmente se a garganta começar a coçar quando você estiver vendo "A Noite" na salinha de cinema do Centro Cultural Banco do Brasil de Brasília. São no máximo 50 lugares, normalmente com a metade ocupada. Ninguém tosse durante o filme, ninguém mexe no cabelo, pessoa alguma se atreve sequer a respirar. É um filme de Antonioni. A tensão suspende tudo - até o pigarro. 

Não foi isso o que aconteceu comigo na tarde desse domingo. Mas poderia. De fato, eu fui ao CCBB para ver, em tela de cinema, exibido a partir de uma película em cópia francesa, um dos clássicos filmes do cineasta italiano - que forma com "A Aventura" e "O Eclipse" uma espécie de trilogia da angústia e do silêncio. Não tive pigarro, mas só imaginar que poderia ter tido já foi o bastante. Pense num pavor. Você pigarreia e a sala inteira se volta pra você com aquele olhar de reprovação. Todos com cara de inteligentes - é impossível estar diante de um Antonioni de boa cepa sem pelo menos parecer superdotado intelectualmente. Seria um daqueles constrangimentos que a gente leva para o túmulo.

É claro que há uma boa dose de exagero no que estou dizendo aqui. O cinema de Antonioni é apenas e sobretudo uma linguagem a mais na vasta matéria cinematográfica que nos beneficia a imaginação, a reflexão e o deleite puro e simples. É cinema necessário - mesmo que, diante de "A Noite" na telona eu tenha sentido certa saudade de outro Antonioni menos, digamos, apegado, "Passageiro Profissão : Repórter". Mas é preciso também reconhecer que o cara torce a corda até o limite máximo de paciência narrativa que o espectador consegue suportar. Não existem elipses nos filmes de Antonioni: a câmera filma tudo. Se o personagem soterrado pelo tédio sai do carro, passa pela calçada, atravessa a recepção e espera o elevador do prédio chegar, Antonioni mostra tudo. Não é à toa que a sua sequencia mais famosa mostra a câmera atravessando lentamente uma janela - o melhor momento daquele "Passageiro" citado há pouco. O fato é que os filmes distendem ao máximo a atenção de quem está na plateia.  

E nesse domingo eu me senti distendido até não mais poder. Nunca se viu uma gente tão angustiada no cinema quanto nos filmes de Antonioni. "A Noite", em muitos momentos, lembra muito - e não apenas por contar com Marcelo Mastroianni - o Fellini de "A Doce Vida". Também temos uma festa onde vale tudo, também temos um grupo de burgueses entediados, também temos a morte de um amigo. Fiquei até imaginando porque Antonioni botou no filme tantos elementos em comum com o do colega - ao mesmo tempo em que não me decidia sobre quem filmou primeiro e, portanto, quem poderia ter copiado quem. Deixemos o suposto plágio pra lá - era tudo resultado do espírito da época. Até porque Buñuel partiu do mesmo ponto pra fazer "O Anjo Exterminador" - com resultados bem melhores, diga-se. 

Mas ver "A Noite" pela primeira vez num cinema de verdade - a sala tem poucos lugares, mas efetivamente é um cinema - afinal serviu também pra lembrar o quanto nossos burgueses mudaram da década de 60 pra cá. No caso dos brasileiros, então, nem se fala. Pra onde foi aquela angústia ancestral, literária, cool e charmosa que em Ipanema, como já lembrou Ruy Castro nos seus livros sobre o bairro, chamavam de "fossa"? Hoje em dia, o burguês padrão da grande zona sul do Brasil não sabe mais sentir uma boa angústia - tudo o que faz de marcante é no máximo protestar contra o PT. Isso pra mim é de uma regressão sem tamanho. Sem falar que angústia boa, desses que rendem filmes de Fellini, Antonioni ou Buñuel, podiam até soar tediosos, mas tinham no elenco belos rostos como os de Matroianni, Jeanne Moreau e - ah, que linda angústia...! - Monica Vitti. 
O mundo, definitivamente, já foi melhor - até quando a angústia era, por incrível que pareça, maior. 



*Além de "A Noite", o CCBB-Brasília está exibindo "A Aventura", "Deserto Vermelho" e outros filmes numa mostra de M. Antonioni. Veja aqui a programação.

Postagem em destaque

O último cajueiro de Alex Nascimento

Começar o ano lendo um Alex Nascimento, justamente chamado "Um beijo e tchau". Isso é bom; isso é ruim? Isso é o que é - e tcha...